sexta-feira, 26 de junho de 2009

'As eleições são fundamentais para a sucessão presidencial de 2011'

Morando há três anos em Buenos Aires, o jornalista e cientista político brasileiro Bruno Moreno consegue enxergar as distintas camadas de discussão para além do processo eleitoral argentino. Segundo ele, mais do que vagas no Câmara e no Senado, a disputa visa à corrida presidencial de 2011.

As decisões políticas na Argentina mexem com o imaginário e com temores profundos do empresariado brasileiro. As eleições no país vizinho recebem extensa cobertura da imprensa por aqui e afetam o negócio de mídia de diversas maneiras. É o caso das polêmicas propostas do casal Kirchner para o setor, que vêm recebendo críticas diárias nos meios de comunicação de lá e daqui. Antecipando a disputa deste domingo, Bruno concedeu por email a seguinte entrevista ao blog Carta & Crônica.

C&C - O que realmente está em jogo nessas eleições? É a aprovação de Cristina Kirchner ou uma mudança política e mesmo social na Argentina?

O que está em jogo nessas eleições, mais do que a aprovação da Cristina, é a governabilidade, daqui pra frente, do projeto que os Kirchner tem para o país. Falo "dos Kirchner" porque o que era uma suspeita de que a Argentina era governada pelo casal se concretizou com a volta de Nestor ao cenário político oficialmente.

Mas com relação à governabilidade, vale lembrar que, quando eleita, CK estava com a maioria na Câmara dos Deputados e no Senado. Com algumas ações de seu governo, descontentamento da classe média portenha, rachas dentro do próprio justicialismo e peronismo e a chamada crise no campo, o bloco dos “Ks” se enfraqueceu e gerou brechas para uma maior popularização de pessoas ligadas à oposição e para uma maior rejeição ao governo justicialista.

Em outras palavras, culminando no que as pesquisas apontam atualmente: o partido justicialista poderá perder cadeiras em províncias importantes como Mendoza e Córdoba, além da derrota já clara na capital. À parte da luta na Província de Buenos Aires, que responde por mais de 40 % de todo o padrão eleitoral (e por isso seja o ponto central de disputa), Kirchner ainda tenha muitas chances de vencer.

Uma das questões é: Como será a governabilidade de Cristina sem a maioria nas duas casas? De acordo com o que a oposição (em suas diversas ramificações) vem pregando e mostrando, será de embate permanente e altamente crítico ao modelo que os Kirchner propõem à Argentina. Mesmo com a maioria, até onde ela pode sustentar essa oposição ferrenha (que vencendo ou perdendo, ganhou espaço no cenário político) e o descontentamento claro da classe média de Buenos Aires?

Nesse sentido, obviamente, essas eleições são fundamentais para o quadro de sucessão presidencial em 2011 e para o tão chamado modelo nacional. Lembrando que a oposição que se forma agora na Argentina não só contesta ações políticas pontuais dos Kirchner, mas propõe decisões muito diferentes e por vezes opostas às propostas e tomadas por Cristina. Um exemplo que pode ilustrar isso é que o atual prefeito de Buenos Aires, Maurício Macri, candidato da oposição e aposta para a presidência em 2011, disse essa semana que se estivesse na liderança da nação, privatizaria de novo a Previdência Social e as Aerolineas Argentinas (reestatizadas por Kirchner). Ou seja, são mudanças importantes em relação ao modelo atual que as diferentes correntes políticas propõem.

C&C - Qual o papel da imprensa nesta disputa? Afinal, a proposta de uma nova lei do setor está incomodando grandes grupos de mídia, como o Clarín. Aliás, parte da imprensa brasileira vem divulgando essas reformas como uma tentativa de acabar com a liberdade de expressão, mas parece que a possibilidade de as telefônicas se tornarem proprietárias de veículos de comunicação e produtoras de conteúdo é uma ameaça às grandes corporaçõe do setor, certo?

A grande denúncia que se faz é que os grandes veículos estão contra o governo. E, por sua vez, Kirchner está contra os grandes veículos. E isso também tem a ver com a lei do setor.

Um dos pontos que devemos saber é que, diferente do Brasil, aqui há uma maior divisão na participação das empresas nos meios. Não existe uma empresa que abarca quase todo o mercado, nem um telejornal, por exemplo, que comunique a quase metade da audiência. Embora o grupo Clarín e o grupo La Nación tenham a maior parte dessa fatia, há um equilíbrio inegavelmente maior do que no Brasil. E muito importante também: as posições políticas assumidas de cada veículo, embora nunca transparentes, são mais claras.

A nova lei do setor audiovisual vem sendo usada como plataforma política dos Kirchner sistematicamente. Por que política? Ela aqui, como no Brasil, não é bem vista por grupos como os citados, mas conta com apoio importante de outros setores da sociedade, como o universitário e até de parte da oposição. A alegação é muito parecida (“liberdade de expressão”) e ganha mais força ainda com a guerra declarada entre os Kirchner e o grupo Clarín, principalmente.

Como o governo tem a força sindical ao seu lado, fundamental para a governabilidade, torna-se um embate também entre força sindical e Clarín e vai tomando contornos mais complexos quando vislumbramos a oposição que essa forca sindical (basicamente peronista) faz com um pensamento mais "de direita", do partido radical e da classe média e média-alta portenha. Ou seja, a guerra declarada entre Clarín e os Kirchner vai além do papel especificamente de imprensa e governo. Deságua em embates políticos e de correntes ideológicas, por assim dizer.

O que chama atenção nessas eleições especificamente é que o fortalecimento da oposição – que não estava integrada no início da disputa – também pode ser visto como fruto do papel dos grandes veículos, inegavelmente críticos ao governo. Francisco De Narvaéz, por exemplo, era um nome com pouco apelo popular, mais conhecido por seu envolvimento com negócios suspeitos, que entrou nesse vácuo complexo de descontentamento das classes altas e falta de alternativas populares da oposição. Em poucos meses já está empatado com Kirchner na província e já se constituiu como um nome poderoso nessa ou nas próximas eleições. E não necessariamente os grandes grupos de comunicação assumiram a candidatura dele, mas com sua clara campanha contra o governo, possibilitaram a ascensão de políticos antikirchneristas.

C&C - Como os resultados podem afetar a relação da Argentina com o Brasil? Bem ou mal, o Mercosul ainda existe, apesar de não cumprir com eficácia seu objetivo principal (ser um mercado comum).

Com todas as críticas feitas, é preciso reconhecer que a relação entre o governo argentino e o brasileiro não é de embates, mas de reconhecido diálogo. Se o Mercosul se enfraqueceu economicamente (comparando ao que movimentou em seu início), pelo menos politicamente há um diálogo fluido entre presidências e, é preciso ressaltar, uma admiração quase messiânica da figura de Lula por aqui.

Pelo lado comercial, lembremos que só as empresas brasileiras respondem por mais de um quinto da economia argentina. É uma presença muito forte. A relação entre Brasil e Argentina pode ser afetada a partir do momento em que se demonstrar uma falta de unidade política e dificuldade de governabilidade por aqui, sempre trazendo o fantasma da crise de 2001, o que pode colocar em risco as relações comerciais entre os dois países (temor por parte dos investidores). E, de fato, o empresariado brasileiro está atento a essas eleições.

C&C - E se essa lei de imprensa passar por aí? Será que pode haver alguma grande mudança na regulamentação do setor aqui no Brasil?

Essa é uma pergunta que só pode ser respondida após essas eleições e depende do grau de fortalecimento da oposição, embora seja uma lei que conta com um forte apelo e aceitação por partes importantes da sociedade argentina. O fato é que essa lei, pelo forte teor político aqui na Argentina, não vai sair de discussão nem perder destaque até sua votação.

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