segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

A Arábia Saudita e as mudanças que estão por vir

As significativas mudanças em curso no Oriente Médio realmente atingem todos os atores. Há muitas questões em torno da Arábia Saudita. Não apenas por conta de sua importância estratégica na produção de petróleo – e este dado é ainda mais relevante num mundo em crise, vale lembrar –, mas também porque o regime do país é tão fechado que as informações são muito contraditórias. Na prática, no entanto, é claro que, como Khadafi na Líbia, a dinastia Saud faz qualquer negócio para se manter no poder.

Há algumas diferenças, no entanto. Se o ditador líbio sempre se esforçou para aparecer, os Saud preferem a discrição. Enquanto Khadafi incitou e patrocinou atos terroristas e criou para si uma diretriz internacional que por muitos anos se baseou no discurso antiamericano, os sauditas se aliaram a sucessivos ocupantes da Casa Branca. Há muitas razões para justificar tal relacionamento, mas é importante não deixar de lado em qualquer análise o embate regional estratégico entre sunitas e xiitas.

Outra importante diferença entre o rei Abdullah (foto) – ocupante do trono saudita – e Khadafi é o método escolhido diante da escalada da oposição. Enquanto o ainda líder líbio optou por contratar mercenários e usar a força militar para reprimir os próprios cidadãos, Abdullah decidiu usar o que a Arábia Saudita tem de sobra: dinheiro. Na semana passada, anunciou medidas no valor de 36 bilhões de dólares para acalmar a população. Também cogita a possibilidade de organizar algum tipo de eleição e investir 400 bilhões de dólares em infraestrutura. A similaridade entre os dois líderes é a que mais lhes causa danos: muito possivelmente, perderão muito com as manifestações.

Khadafi deve perder mais porque meteu os pés pelas mãos e deu o tremendo azar de estar espremido entre Tunísia e Egito. Vai acabar caindo em algum momento. No caso da Arábia Saudita, é pouco provável que a monarquia da família Saud – de fato, a fundadora do moderno Estado saudita – seja derrubada. Principalmente porque o regime é tão hermético que a oposição é desarticulada. Mas mesmo o rei Abdullah vai precisar se esforçar para mudar. E este processo será profundamente doloroso.

Para variar, o WikiLeaks apresenta material novo que ajuda a entender a complexidade dessas mudanças. Os muitos príncipes e seus parentes são sustentados pelo governo. Submetido ao Ministério das Finanças, o curioso “Escritório de Decisões e Regras” é encarregado de distribuir a grana. A mesada é definida de acordo com o grau de parentesco com a família real. “São cerca de dez bilhões de dólares anuais controlados por meia dúzia de príncipes” – palavras usadas por um príncipe no relatório vazado pelo WikiLeaks.

A questão agora é que essas informações podem acrescentar ainda mais revolta à incipiente tentativa de oposição saudita. E aí retomo um dos aspectos tratados por aqui ao longo dessas três últimas semanas: os meios de comunicação passaram a agentes, não meros reprodutores de acontecimentos. E a al-Jazeera, a principal protagonista deste grande evento midiático, também possui suas próprias convicções políticas. A rede de TV qatari está alinhada aos interesses dos Estados xiitas, principalmente do Irã. Desestabilizar a Arábia Saudita é profundamente interessante a Teerã como forma de se firmar como potência hegemônica regional. Como o controle sobre os meios de comunicação é bastante rígido pelos sauditas, talvez seja mais difícil que as informações cheguem ao país.

Além disso, um investimento financeiro tão alto como o prometido pode prejudicar o fluxo que se tornou padrão à realeza. Isso poderia provocar uma instabilidade curiosa e muito diferente daquela que tem acontecido até agora: a elite insatisfeita com a própria monarquia que a sustenta. É por todos esses motivos que considero único o caso da Arábia Saudita.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Na crise da Líbia, a ONU e as potências ocidentais cometem um erro após o outro

Toda a movimentação no Oriente Médio tem servido para sacudir os muitos conceitos que envolvem a política internacional. Se há uma boa dose de realismo – com a possibilidade de os EUA terem de alterar seu discurso e serem obrigados a dialogar com o islamismo radical legitimado – , há também um apelo à justiça. E este caso se exemplifica, em boa parte, nos sucessivos pedidos por intervenção militar na Líbia.

Foto: Khadafi em pronunciamento na ONU, em 2010

“Quando civis sofreram em Kosovo, a Otan foi rápida em agir e intervir de forma a evitar a violação dos direitos humanos. No Iraque, potências ocidentais se entusiasmaram para derrubar um tirano e “estabelecer democracia”. Mas quando se fala na Líbia, a ira oficial do ocidente é completamente ausente”. Este é um trecho do editorial desta sexta-feira do jornal liberal libanês Daily Star. Acho um tanto forçado considerar que a “ira” pelos acontecimentos na Líbia é inexistente, mas o fato é que as potências têm demorado a tomar decisões práticas.

 
Sanções econômicas ou zonas de proibição de voo sobre o território líbio são medidas paliativas. Não são suficientes para impedir que Khadafi continue a ordenar o assassinato em massa e indiscriminado de opositores. Principalmente os EUA estão perdendo uma grande oportunidade de, em parte, abrir uma frente positiva com os países árabes da região – e mais ainda com suas populações. Ao contrário do colunista Hussein Ibish, da Foreign Policy, não creio que uma intervenção militar americana seria encarada pela população líbia como uma prova de que Washington está por trás das rebeliões.

 
Há um enorme clamor popular no mundo árabe para que se faça algo de forma a impedir que a violência continue. Até agora, os dirigentes europeus têm perdido o capital de confiança – se é que ainda lhes restava algum. A frieza das declarações de chanceleres e lideranças políticas europeias beira a discriminação. Enquanto a população líbia tem enfrentado o exército nas ruas, com frequência muitos dirigentes europeus demonstram temor de “uma onda de refugiados líbios” ou o descontrole do preço do barril de petróleo. É claro que o realismo político costuma superar as decisões internacionais do países, mas a atitude da União Europeia até agora é um fracasso completo. Mostra que o continente do “humanismo” perdeu de vez qualquer bom senso, qualquer traço de sensibilidade.


E isso facilita ainda mais para os EUA. Mas mesmo a Casa Branca parece receosa em agir. E é compreensível diante do histórico recente em Iraque e Afeganistão; e, ainda mais profundo, das atuações militares em Ruanda e Somália. No final das contas, no entanto, as contradições europeias e da ONU são as mais evidentes. Não custa repetir, mas a ONU presenteou Khadafi com uma vaga em seu Conselho de Direitos Humanos mesmo depois que o governo da Líbia enforcou dissidentes políticos, assassinou 1,2 mil prisioneiros e patrocinou o atentado terrorista de Lockerbie.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O declínio do império americano

Dando continuidade ao assunto abordado ontem, acho válido aprofundar mais os grandes prejuízos regionais americanos. No final das contas, se ainda há muitas dúvidas quanto ao futuro dos países atingidos pelos ventos da mudança, uma das poucas certezas diz respeito aos maiores derrotados deste processo: EUA e Israel. E como na maioria das situações, quando há perdedores, há também os vencedores.

E o mapeamento dessas conclusões é muito claro porque os acontecimentos chacoalharam os modelos estabelecidos. De um lado, foram colocados para fora do jogo os supostos líderes moderados. E é bom que se diga que este termo “moderado” vai precisar ser revisto. Nas palavras conscientes do diplomata jordaniano Marwan Muasher, a política americana para o Oriente Médio sempre priorizou a estabilidade em detrimento da democracia. Será preciso também mudar este paradigma a partir de agora. O fato é que a geopolítica regional caminha para o outro lado da balança: democracia sobreposta à estabilidade – pelo menos sob a ótica de americanos e israelenses.

 

Disse tudo isso para concluir que os modelos que levavam em consideração a estabilidade estão relegados ao lixo da história local. Seguramente, a mudança que está por vir em Egito, Tunísia, Líbia, Iêmen e Bahrein não irá destinar honras históricas aos líderes autoritários depostos. Até porque a forma como este processo se sucede apresenta requintes óbvios de heroísmo por parte dos manifestantes.

E aí é um tanto curioso notar que as duas potências em disputa por poder no Oriente Médio assistem passivamente aos acontecimentos. EUA e Irã não são protagonistas dos movimentos populares, mas sofrem diretamente suas consequências. A Casa Branca não apenas sai enfraquecida deste momento, mas periga perder de vez a influência regional. Se antes de toda esta reviravolta havia uma espécie de esquematização da disputa – a polarização política entre Estados sunitas e xiitas sobre a qual tratei tantas vezes por aqui –, agora ninguém sabe o que esperar dos novos governos que irão surgir.

No entanto, há uma enorme possibilidade de os países ora aliados à política externa americana abandonarem tal fidelidade. E aí o esquema ao qual os EUA se agarraram com tanta certeza simplesmente deixará de existir. Os países não são seus líderes. O Egito não era Hosni Mubarak, muito embora este fosse seu projeto político. Novos dirigentes colocarão em prática novas diretrizes. E, pelo menos até este momento, o Irã é o maior vencedor geopolítico da região porque conseguiu o feito de esmagar a estratégia americana sem fazer qualquer esforço. O passeio dos navios de guerra pelo Canal de Suez e pela costa de Israel foi apenas uma forma de tripudiar.

O programa de “relações públicas” iraniano vai ter o trabalho apenas de empurrar o carro ladeira abaixo. Pesquisa do instituto Brookings mostra que Mahmoud Ahmadinejad é a terceira figura política internacional mais admirada nos países árabes (fica atrás apenas do primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan, e do presidente venezuelano - ! -, Hugo Chávez). Basta agora vincular o regime de Teerã aos muitos partidos islâmicos que estão surgindo para que o modelo de governo iraniano se transforme em protagonista das novas democracias que irão surgir. A ironia disso tudo é que a tão sonhada democracia no Oriente Médio vai ajudar justamente os principais inimigos dos EUA. Não era difícil prever esta possibilidade. Basta ver o que aconteceu democraticamente no Líbano há poucos meses e na Faixa de Gaza, em 2006.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Líbia, EUA e o novo Oriente Médio

Há muitas contradições nos termos usados quando se aborda a tragédia humanitária líbia. A mais visível delas diz respeito ao exército de mercenários contratado por Khadafi para se manter no cargo. De fato, o ditador tem espalhado panfletos pelos países árabes em busca de homens dispostos a vender suas vidas pelo regime. Esta informação amplamente divulgada pode chocar leitores ocidentais. Mas, como bem lembra reportagem da revista Time, a associação entre patriotismo e forças armadas é um fenômeno recente, do século vinte. Antes disso, contratar “funcionários” para as guerras nacionais era prática comum.

Longe de mim querer livrar a barra do Khadafi, mas acho válido fazer a seguinte comparação: os EUA firmaram um acordo com a empresa Blackwater (hoje, Xe) para que ela cuidasse de boa parte da empreitada militar no Iraque. E tal fato mereceu pouca relevância no ocidente, causando quase nenhuma surpresa. São situações diferentes, mas ambas envolvem recursos humanos militares privados.

E por falar nos EUA, acredito que tal movimentação geopolítica em curso deve alterar também o posicionamento americano na região. Pode parecer fato isolado, mas o sucesso da travessia dos navios de guerra iranianos pelo Canal de Suez é um golpe nas pretensões de Washington no Oriente Médio. O teste iraniano sobre o comportamento da nova administração egípcia foi bem sucedido. Pelo menos num primeiro momento. Acho que a permissão concedida ao Irã é uma pequena demonstração do que vem por aí. E, como a onda de manifestações populares, há possibilidade de uma resposta em bloco.

A insatisfação com o governo local é um traço marcante a todos os protestos. Por mais que as exigências populares não fizessem menção clara aos EUA, ninguém se esqueceu do apoio histórico americano aos ditadores depostos (à exceção da Líbia, claro). Sem qualquer dúvida, as novas administrações emergentes desse grande escombro político não vão esquecer este dado. Pelo contrário, até porque há a real possibilidade de grupos com discursos mais radicais assumirem postos importantes nesses países.

E o impacto dessas grandes mudanças será bastante sensível aos interesses de Washington na região: eventuais acordos de cooperação na área de segurança e combate ao terrorismo devem esfriar. E por isso a posição de Obama ainda é de espera por resultados mais concretos. E enquanto a Casa Branca se mantém afastada deste cenário por motivos óbvios, o Irã experimenta como pode. E a grande ironia disso tudo é que a tão sonhada expansão da democracia parece seguir a regra de três em relação ao posicionamento americano: quanto mais democracia, menor a aproximação com os EUA. Pelo menos num curto prazo.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Caos e violência na Líbia: ONU faz questão de se "esquecer" das próprias responsabilidades

Se não for possível manter o status quo, a situação de caos generalizado na Líbia favorece principalmente o ditador Muamar Khadafi. Aliás, este é o objetivo dele. Sempre é importante lembrar que seu maior apego é ao cargo que ocupa. Portanto, mostrar que sem ele na função de comandante supremo do país a situação tende a piorar atende plenamente a esta estratégia. É isso o que Khadafi pretende fazer. Vamos aos fatos:

Quanto mais dividida a Líbia estiver, maior a chance de uma guerra civil. Num eventual cenário de conflitos internos entre as muitas tribos que compõem a população (como informado com exaustão pela grande imprensa), a tendência é de aumento do número de mortos – cenário que não agrada a ninguém, principalmente à ONU e potências com direito a assento no Conselho de Segurança. E estabelecer o caos na Líbia não é tão complicado, como mostra o colunista de inteligência da revista Time, Robert Baer.

Segundo uma de suas fontes próxima ao governo líbio, Khadafi cogita a possibilidade de sabotar as próprias instalações responsáveis pela extração de petróleo, ordenar a libertação de milhares de radicais islâmicos que até agora estavam presos e chantagear países da Europa sob o argumento de que uma onda de imigrantes ilegais pode tentar furar o controle estabelecido pelo próprio ditador.
 
E se há atualmente grande preocupação justificada com a população líbia, esta mesma comunidade internacional pode ser questionada por anos de incoerência. O comportamento de Khadafi de sacrificar os próprios civis em nome da permanência no cargo não surpreende porque não há nada de novo neste padrão. Aliás, numa prova de coerência mortal entre discurso e prática, o líder líbio simplesmente dá continuidade à violência de sempre. Como recorda o Jerusalem Post, em 1996 o regime promoveu o massacre de cerca de 1,2 mil opositores políticos.
 
E aí é um tanto curioso assistir à hipocrisia internacional quando a Corte Penal Internacional e o Conselho de Direitos Humanos da ONU se manifestam – com justiça, diga-se de passagem – com firmeza contra a violência imposta por Khadafi. A questão é: por que isso não foi feito antes? Por que este mesmo Conselho – estabelecido em 2006 – não fez qualquer menção aos acontecimentos na Líbia? Por que das suas 50 resoluções não há nenhuma direcionada a Khadafi (Israel é alvo de condenação de 35 delas)? Por que, em 2010, a Líbia passou a figurar entre os membros deste mesmo Conselho de Direitos Humanos?

De certa forma, o ditador líbio tem todo o direito de se sentir traído. O recado internacional enviado a ele claramente era de que poderia fazer o que bem entendesse, o Conselho não iria interferir em seus assuntos internos. Afinal, o foco dos problemas mundiais parecia ser exclusivamente Israel. A ambiguidade deste momento é que a ONU e as demais organizações subordinadas a ela agem como se ninguém fizesse qualquer questão de resgatar suas decisões recentes. E suas muitas incoerências.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Agora sim: revolução

Agora sim podemos classificar os acontecimentos em países árabes e islâmicos do Oriente Médio e Norte da África como revolução. O caso específico do Egito por si só ainda não poder ser interpretado como o surgimento de um novo modelo político, mas a onda de protestos que se seguiu estabelece um caminho sem volta. A luta por liberdade e mudança em Tunísia, Marrocos, Egito, Líbia, Bahrein, Iêmen e Irã já marca um capítulo importante da história mundial.

Foto: protestos contro o governo Khadafi na Líbia

E este é um caminho sem volta porque mesmo que as ditaduras consigam ter sucesso e permanecer no poder, o recado já está dado. E, sem a menor dúvida – ainda neste cenário de manutenção do estado vigente –, os líderes atuais precisarão fazer concessões em troca do restabelecimento da ordem. Negociar com a perspectiva de encontrarem forças de oposição capazes de apresentar alguma resistência importante já é um fato novo de grande importância mundial. A análise geopolítica e mesmo a atuação das antigas lideranças desses países passam a precisar pensar passos e decisões a partir de agora, a partir desta nova e ainda cambaleante realidade.

Esta perspectiva apresentada considera somente a possibilidade mais conservadora, onde os governos ameaçados pelos protestos populares conseguiriam, de alguma maneira (possivelmente da maneira mais violenta, diga-se de passagem), manter o status quo. Ou seja, existe ainda chance real de que parte desses países viva novas realidades, com novos regimes construídos sobre os escombros das ditaduras. Este terreno de experimentação é mais incerto e dá margem a especulações ainda mais criativas.

Para não cair no erro da generalização, é importante analisar cada um dos levantes populares separadamente. A Líbia é a bola da vez e pode se transformar também no palco da repressão mais violenta. Isso porque, ao contrário do Egito (onde o comando do exército possui certa independência do governo central), as forças militares líbias são controladas de muito perto pela família Khadafi. Como escrevi durante as manifestações no Cairo, Mubarak caiu mais cedo do que se imaginava porque já não contava com o apoio do poder coercitivo. Não é o que acontece na Líbia, pelo contrário.

Por isso também que fontes próximas à família Khadafi disseram ao jornal saudita al-Sharq al-Awsat que para o coronel Muamar Khadafi, “é matar ou morrer”. E é isso mesmo. Como lembra Ian Black, editor de Oriente Médio do britânico Guardian, o objetivo central do ditador líbio sempre foi se manter no poder. Por conta disso, fez grandes concessões – abrir mão do programa de desenvolvimento de armas nucleares e indenizar os familiares das vítimas do atentado ao avião da Pan Am que caiu sobre Lockerbie, em 1988, foram duas delas. E o país assiste à escalada de violência porque nem Khadafi quer deixar o cargo, nem os manifestantes podem recuar agora (seguramente, o regime irá punir com severidade os capturados).

O caso líbio é muito importante justamente por conta deste infortúnio violento. Se houver um banho de sangue, a comunidade internacional terá de tomar alguma atitude. E a ONU vai precisar assumir alguma responsabilidade diante de caso. Como Trípoli sofreu sanções durante muitos anos, possivelmente elas não seriam suficientes para mudar o quadro de repressão. A resposta teria de ser mais assertiva, uma invasão militar, por exemplo. E a dúvida principal seria: como o Conselho de Segurança se comportaria diante disso? Os países árabes e islâmicos estariam dispostos a abrir tal precedente? Até que ponto a comunidade internacional se manteria indiferente ao eventual crescimento do número de mortos na Líbia?

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Em busca de protagonismo, Irã testa nova dinâmica de poder regional

É compreensível a preocupação em torno da mais recente ação publicitária e geopolítica iraniana. A tentativa de conseguir autorização das autoridades egípcias para a passagem de duas embarcações do Irã pelo Canal de Suez é muito criativa e ousada. Antes de qualquer argumentação contrária que questione o fato na intenção de avaliá-lo como, imagina, mera coincidência, é importante dizer que há 32 anos navios da República Islâmica não usam a passagem marítima. Há 32 anos está em vigor o acordo de paz entre Egito e Israel.

Segundo autoridades de Teerã, o destino dos navios é a Síria. Ou seja, seguindo o curso pelo canal, os iranianos passariam muito próximos a Gaza e Israel. É claro que não se trata de uma simples viagem. Tanto que o assunto tem sido tratado com seriedade e constrangimento por todas as partes envolvidas – principalmente pela ainda vacilante administração egípcia. Há um evidente desencontro de informações. E o motivo é muito simples: todo mundo teme dar a palavra final sobre o assunto.

Vejamos os fatos: a companhia que administra o canal negou ter autorizado a passagem dos navios. Autoridades do Cairo disseram o mesmo. O administrador do Canal afirmou depender de autorização do Ministério da Defesa. No final das contas, a agência de notícias oficial do Egito informou que autoridades aprovaram o pedido iraniano após receberem garantias de que as duas embarcações não carregavam armamento nuclear ou material químico.

O assunto é tão delicado porque mostra a disposição iraniana de, mais uma vez, criar um fato. Não por acaso, um fato que novamente polariza posições em relação a Israel. E, ainda mais circunstancial, no momento em que a oposição interna iraniana está em nova rota de choque com o regime de Ali Khamenei e Mahmoud Ahmadinejad.

A política externa do Irã é focada na disputa de poder regional. Com a queda de Hosni Mubarak e da ainda vigente posição de impasse no maior rival sunita, há uma lacuna importante em aberto.

Como escrevi ontem, este é um momento de testes para todos os envolvidos. O Irã se aproveita deste vazio para alcançar quatro objetivos de uma só vez: provocar Israel, criando um fato regional que mobiliza as massas (inclusive a própria população iraniana); testar em que ponto está a aliança entre a nova administração egípcia e os EUA (com Mubarak na presidência, jamais navios iranianos seriam autorizados a cruzar o Canal de Suez); reafirmar sua posição de confronto a Israel e EUA – postura que alavanca o sucesso iraniano nas ruas do Oriente Médio; e angariar apoio entre a população egípcia contrária à manutenção do acordo de paz com Israel.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Bahrein, Irã e EUA: incoerência cruzada

A indefinição em torno do futuro no Oriente Médio gira bastante em torno da própria incapacidade dos EUA de entenderem qual deve ser seu posicionamento diante de tantas mudanças. Os eventos têm se sucedido dia após dia e as autoridades envolvidas – as que estão no alvo das reivindicações e as que não estão – têm adotado a estratégia das respostas mínimas. Ou seja, nenhuma delas se expõe demais ou ousa além do óbvio.

Mesmo a tentativa do regime iraniano de capitalizar as manifestações no Egito a favor de um suposto “despertar islâmico” é uma postura óbvia quando se leva em consideração a grande disputa de poder entre os Estados xiitas e sunitas da região. Este é um momento único muito mais porque os EUA ainda não se posicionaram claramente. E deixar a maior potência do planeta num papel reativo é algo muito raro na história desde meados do século vinte.

E os atores todos se deram conta disso. É a hora de reivindicar. É a hora de pisar mais fundo no acelerador. Enquanto Washington ainda se mantém nesta posição – e isso vai durar pouco tempo, certamente – quem gritar mais alto, quem tiver maior capacidade de mobilização, vai sair na frente. E não me refiro somente a contar com o apoio americano, mas também criar fatos consumados que levem os EUA a ter de lidarem com novas realidades. Por exemplo, a Irmandade Muçulmana legitimada no governo egípcio.

A situação no Bahrein se enquadra nesta categoria. Há alguma diferença, mas as manifestações no pequeno país do Golfo Pérsico procuram alterar uma balança de forças plenamente apoiada pelos americanos. E, ao contrário do Egito, a população do Bahrein usufrui de qualidade de vida bastante razoável. Inclusive de alguma democracia. Por exemplo, dos 40 membros da Câmara Baixa, 18 são representantes da oposição. No ranking de renda per capta, o Bahrein ocupa a 20ª posição; o analfabetismo foi erradicado.

Mas nada disso satisfaz porque, como já acontecia no Iraque, nenhuma maioria se contenta em ser governada pela minoria. E é exatamente o que ocorre entre xiitas e sunitas no Bahrein, como se sabe. E aí entra em jogo o conceito de realismo político sobre o qual comentei ontem: a incoerência cruzada.

A luta entre os modelos políticos é tão acirrada, que EUA e Irã tomam a mesma atitude ao contrário. Explico: o Irã procura influenciar os países da região inflamando um discurso do despertar islâmico, mas não concebe qualquer tipo de manifestação interna. Os EUA demandam – à exceção do Irã, com muita discrição – mudanças que atendam às expectativas populares da oposição iraniana, mas se mantêm distante de críticas abertas às repressões aos protestos no Bahrein.

E este momento está afetando todas as relações de poder estabelecidas no Oriente Médio. Por isso ele é tão especial.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

As armadilhas retóricas deste momento político

Com as novas dinâmicas se estabelecendo no Oriente Médio, mesmo a postura americana precisou mudar. Se durante a crise egípcia os EUA recuaram o máximo possível – primeiro pela surpresa, depois como estratégia –, é chegada a hora de bater na administração iraniana. Mas bater com cuidado, é bom que se diga. Pelo menos é o que Obama vem fazendo desde que Teerã passou a ser palco de protestos contra o regime.

Foto: Protestos em Teerã nesta quarta-feira

 

Aliás, é importante lembrar que a insatisfação de opositores a Ahmadinejad é uma lacuna muito viva desde as eleições de 2009. Há menos de dois anos, a polêmica em torno do mais recente êxito político do presidente iraniano jamais obteve resposta à altura das demandas populares – pelo menos da população urbana do país. E eis que a crise egípcia culminou por dar nova força ao movimento. Os acontecimentos no Cairo alimentam de certa maneira este novo-velho impasse no Irã pelas características similares que compartilham: exigência de reformas sociais e políticas profundas articuladas, basicamente, por estudantes e profissionais liberais urbanos integrados pelos novos meios de comunicação.

Obviamente, o Departamento de Estado americano já fez esta leitura. E o recuo de 20 dias atrás é passado. Washington julga ter adotado estratégia vitoriosa. Afinal, o argumento de Mubarak de que os protestos representavam a tentativa de interferência estrangeira do país não aplacou ânimos – e não conseguiu mantê-lo no poder.

Neste momento, os EUA decidiram ampliar – como podem e o mais discretamente possível – sua ação. Por exemplo, criaram uma conta no Twitter em persa para se comunicar diretamente com os manifestantes. É uma tentativa de surfar na mesma onda sem que o país seja acusado de estar por trás desta onda. E muita gente tem usado o termo revolução sem medo de errar, mas acho que a grande revolução em curso é este momento em que o inimigo externo é deixado de lado em nome de discussões internas sérias. Se elas serão produtivas, só o tempo dirá.

Ainda sobre a nova postura americana, é interessante esclarecer a diferença entre o que ela é e o como ela quer ser interpretada. Se Obama está tendo um enorme prazer de condenar a de fato condenável repressão oficial iraniana aos protestos, é bom deixar claro que não tem se sentido nem um pouco à vontade para fazer o mesmo em relação ao Bahrein. E os motivos são fáceis de serem compreendidos. A monarquia sunita do país é aliada dos EUA, fica logo ao lado do Irã e abriga a quinta frota da marinha americana composta de 15 navios de guerra.

Ou seja, para completar o raciocínio, a imagem que os EUA pretendem reafirmar com entusiasmo agora é que a administração do país está moralmente aliada a todos os movimentos democráticos na região. Mas, na prática, o realismo político é o norte de Washington, assim como da maior parte dos países. E os americanos não podem abrir mão dos benefícios de sua relação com a monarquia de Bahrein.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Exército egípcio é até agora o maior beneficiário da queda de Mubarak

O futuro político e social do Egito é uma grande incógnita. E isso me parece até natural, em virtude da essência dos protestos que culminaram com a queda de Mubarak. Se daqui para frente o país vai se tornar um exemplo de democracia no Oriente Médio árabe e islâmico – o que eu particularmente duvido – ninguém sabe. Mas o fato é que os dias de manifestações foram absolutamente anárquicos.

E a expressão popular nas ruas foi exacerbada até mesmo pelos 30 anos de repressão. Esta vontade sufocada de mudar “tudo o que existiu até agora” pode complicar as decisões estratégicas a partir do momento em que o presidente foi deposto. Qual o próximo passo? Mudar o sistema de governo, acabar com qualquer restrição à imprensa livre, retomar logo o poder das mãos do exército? Ninguém sabe. E se ninguém sabe é porque intrinsecamente não há qualquer organização por trás do movimento.

É bem provável que uma liderança surja dos escombros de Mubarak. Aliás, já há certo acotovelamento entre figuras políticas em busca de ascensão neste novo Egito. Sempre faço questão de lembrar um ditado popular que costuma se mostrar muito correto quando aplicado a essas situações: crise é oportunidade. E pouca gente tem dado a atenção devida aos motivos que tornaram possível o sucesso dos protestos. Sem a menor dúvida, o exército tem profunda participação neste processo. Se não fosse sua cumplicidade, as manifestações teriam sido sufocadas desde o início. Com muito sangue e sofrimento, é importante dizer. Mas tais condições não podem ser consideradas inéditas no Oriente Médio.

O poder coercitivo sempre será fundamental. Na prática, perder o controle sobre o exército é perder qualquer jogo político. E a rapidez com que as forças armadas egípcias aderiram ao movimento popular é no mínimo suspeita. Ou deveria ser. Repararam como o exército conseguiu alcançar dois objetivos de uma só vez sem precisar enfrentar grande desgaste? Derrubar Mubarak e conseguir ainda mais legitimidade popular. E agora são os generais egípcios quem dão as cartas no país.

E já há duas evidências importantes de que nem tudo é uma maravilha neste novo cenário político: autoridades militares do país falam apenas vagamente sobre a manutenção do poder durante um período de seis meses, quando a atual constituição exige a realização de eleições em 60 dias; e a ordem de banir encontros de sindicatos e proibir greves. Ou seja, por ora não se comenta sobre grandes mudanças, a não ser a já consumada exclusão de Mubarak do jogo político. A pergunta mais importante neste momento é até bem óbvia: o exército vai passar a real interlocutor dos anseios populares ou ele simplesmente vai substituir a elites política de outrora em nome de seus próprios interesses?

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Mubarak renuncia. E agora?

Com o principal capítulo da novela em curso – a renúncia de Hosni Mubarak -, restam mais perguntas que respostas sobre a situação no Egito. A própria natureza dos protestos contribui para o clima de indefinição que toma conta do país a partir de agora. Se a imprensa internacional vai se refestelar sobre as muitas imagens impactantes em torno deste processo, é preciso saber que a euforia terminará em algum momento. E como a vida real não é novela, este capítulo não é o último.

Lembrando sempre que o objetivo dos manifestantes era derrubar o presidente de três décadas de mandato. E ponto final. Se a partir de amanhã ou domingo – quando a semana começa nos países árabes – o Egito vai se tornar uma real democracia, aí é uma outra história. Uma outra História, de fato. Afinal, é preciso dizer que a queda de um ditador não se traduz necessariamente no nascimento de um regime realmente livre ou popular. Há muitos passos até que isto aconteça. No caso egípcio, no entanto, há certa justificativa para os otimistas: por mais repressor que Mubarak tenha sido nesses 30 anos, o país possui instituições democráticas; não será necessário construí-las a partir do zero. As instituições existem. Eram reprimidas, ofuscadas, ameaçadas, mas existem.

Com a renúncia de Mubarak, o exército do Egito passa a agir como o agente que vai garantir reformas. Isso causa arrepios. Ainda mais a nós brasileiros, que vivemos história tão semelhante. Mas há diferenças em relação ao Egito. As forças armadas seculares podem servir, inclusive, como contenção a um eventual esforço de poder por parte da Irmandade Muçulmana. Muita gente tem comentado com entusiasmo que o Egito pode se tornar uma espécie de Turquia, país muçulmano que encontrou sua própria maneira de lidar com o islamismo político.

Esta análise é correta até certo ponto. As eleições deste ano na Turquia podem vir a marcar uma virada neste suposto equilíbrio. O islamismo político representado principalmente pelo primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan ganha força a cada dia, desafia os EUA e se alia a Irã e Síria. Fora o fato de que o nascimento dos modernos Estados turco e egípcio seguiu caminhos bem distintos. Mas o exército da Turquia acabou por se tornar uma entidade em parte ideologicamente independente, uma espécie de bastião do secularismo nacional. Daí as esperanças depositadas nas forças armadas do Egito.

Não apenas por este papel supostamente transitório acredito que os militares egípcios terão papel central no novo jogo político. Mas também porque, na posição de força do regime, eles serão um dos principais focos de atração dos muitos interesses em jogo. Num processo de retorno à democracia, o exército representa o poder coercitivo com o qual cada um dos grupos que se aglomeram neste novo cenário vão querer contar.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

A reação dos regimes autoritários ao clima de mudança no Oriente Médio

A situação parece ter tomado novo rumo no Egito. As forças armadas anunciaram a aliança com os revoltosos. Não se sabe se isso significa que o exército terá papel central no novo governo ou se simplesmente quer usar o monopólio da força que lhe cabe para finalmente depor o presidente Hosni Mubarak.

Lembro-me de outro texto que escrevi na terça-feira (leia aqui). Se os militares assumirem o poder, existe a possibilidade de a Irmandade Muçulmana buscar alguma influência nesta área. Por mais que seus líderes jurem que a participação do movimento nas manifestações não é sinal de qualquer ambição, tenho certeza de que o grupo vai estar presente no novo governo a ser formado.

E isso é até muito natural. Enquanto a Irmandade Muçulmana possui todo o aparato organizacional e ideológico, as manifestações populares se tornaram reais pela insatisfação generalizada. Ou seja, há muitas reivindicações por mudanças de toda a sorte, mas não um planejamento estratégico de longo prazo – e isso vai fazer toda a diferença num futuro próximo. Aliás, esta característica explica também o sucesso dos protestos ao unir setores tão distintos da sociedade egípcia, provocando, inclusive, a tolerância à comunidade cristã do país.

Quando a poeira baixar, os distintos interesses e conflitos irão emergir. Resta saber como uma sociedade sedenta por democracia e reprimida por 30 anos irá reagir quando tiver de negociar. E, como escrevi ao abordar o vazamento dos documentos secretos palestinos, negociar é perder. Sempre.

Enquanto isso, quem nunca perdeu procura reagir como pode à derrota iminente. Há uma curiosíssima união dos regimes ditatoriais. Em certo tom desafiador, a Arábia Saudita declarou apoio a Mubarak. O rei Abdullah (foto), inclusive, teria dito – segundo informações do britânico Times – que seu regime estaria disposto a financiar o Egito de Hosni Mubarak, caso os EUA deixarem de enviar os 1,5 bilhão de dólares anuais ao país.

Esta declaração é uma real lembrança a Obama de quem são seus verdadeiros aliados entre os países árabes “moderados”. As autoridades oficiais de Egito, Arábia Saudita e Jordânia estão decepcionadas com a mudança de posição da Casa Branca. Enquanto foi possível, Washington fechou os olhos a todos os governos ditatoriais. Mas a mudança está a caminho e a maior potência do planeta não pode agir como se nada estivesse acontecendo. Por mais que tal atitude seja contraditória.

Mais além do Oriente Médio, coube também uma reação chinesa: uma declaração oficial de que os EUA não devem interferir nos assuntos do Egito. Se Arábia Saudita, Jordânia e os demais autoritários regionais temem suas respectivas quedas, o caso chinês vai um pouco além disso. Beijing sabe da oposição interna e de seu desejo por mais abertura, mas também teme os acontecimentos no Oriente Médio e na África. Vale lembrar que as autoridades da China mantêm contratos comerciais com todo o tipo de parceiro – Irã e Sudão são apenas dois exemplos dos controversos negócios estabelecidos pela república popular. O realismo político se funde com o realismo econômico. Grandes mudanças nesses países podem provocar também importantes revisões contratuais.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Crise no Egito: Wael Ghonim e o poder da internet como meio de transformação política

Meio que por acaso, os EUA e o ocidente começam a vislumbrar uma luz no fim do túnel para o impasse egípcio. E ela atende pelo nome de Wael Ghonim (foto), o jovem executivo do Google responsável pela área de Marketing da empresa no norte da África e Oriente Médio. Se ainda há muitos temores quanto à liderança que vai emergir após este processo, o rapaz preenche todos os requisitos demandados por Washington e seus aliados. É claro que por ora é cedo para afirmar a centralidade de Ghonim no Egito pós-Mubarak, mas sua popularidade é real e coerente com este novo tempo.

 

Se o efeito cascata dos protestos fluiu por conta da liberdade intrínseca ao território virtual – potencializada pelas transmissões das manifestações na Tunísia – , nada mais natural que o líder adorado pelas massas seja fruto deste ambiente. Agora se sabe que Ghonim é o administrador por trás da página de Facebook em homenagem a Khalid Said, jovem egípcio morto pela polícia do país na cidade de Alexandria, em junho do ano passado.

Após 12 dias preso, Ghonim foi libertado e se transformou em fenômeno popular. Ou melhor, acabou por se concretizar nesta posição no meio real. Aclamado por milhares de pessoas na Praça Tahrir, simplesmente consumou o fato já existente no mundo virtual. E aí os protestos do Egito passam para a história como evento vanguardista devido à introdução de muitos elementos novos; inspirado pela TV, organizado pela internet e, finalmente, coroando na prática um rei até ontem restrito ao universo das redes sociais. Esta sequência de acontecimentos não pode ser ignorada de nenhuma maneira.

A revolta popular é também jovem. E os jovens deste mundo e deste tempo usam suas próprias ferramentas de comunicação. E a política não poderia ficar de fora disso. O Egito é, hoje, o primeiro palco mundial a aclamar um herói virtual. Se até bem pouco tempo o Oriente Médio estava habituado a figuras autoritárias que, após ascensão ao poder, passam a controlar o acesso aos meios de comunicação, a juventude egípcia inverteu esta lógica. Ela deixa claro que a internet, principalmente, não é apêndice de um movimento político, mas ambiente central da transformação viva do país.

Mais ainda, a “eleição” involuntária de Ghonim ao posto central deste processo é também uma extensão das reivindicações virtuais contra a velha ordem política. No lugar dos muitos representantes de distintos movimentos já atuantes na vida do país, um jovem profissional sem qualquer vínculo partidário. Ghonim é a personificação da mensagem de rompimento protagonizada pelos manifestantes. E ele pareceu entender isso muito bem ao afirmar em entrevista ao canal privado Dream TV que os verdadeiros mártires estão acampados na Praça Tahrir. Mal comparando, como no filme A Vida de Brian (1979), a postura anti-heroica acaba por, involuntariamente, seduzir a multidão.

O processo de retroalimentação entre manifestantes, redes sociais e Wael Ghonim continua. Uma página do Facebook nomeando-o líder dos protestos alcançou a marca de 200 mil membros. E, como se sabe agora, nada disso se trata somente de uma grande brincadeira. Se o meio já foi encarado como trivial,os acontecimentos no Egito ensinam que é preciso rever conceitos. A mensagem é muito séria.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Sobre revoluções, Egito e Irã

Como bem lembra David A. Bell em artigo publicado na Foreign Policy, é um tanto equivocado usar o termo revolução para definir os protestos no Egito. Assim como aconteceu na Tunísia, o objetivo dos manifestantes do Cairo é bem pragmático: derrubar o presidente do país. E acontecimentos deste tipo já se repetiram muitas vezes na história mundial. Inclusive aqui no Brasil. Aliás, ao que me lembro, ninguém costuma chamar o senador Lindberg Farias de líder dos revolucionários do início dos anos 1990.

Longe de qualquer avaliação momentânea, a revolução em curso durante mais de 30 anos no Oriente Médio é a iraniana. Sei que soa estranho dizer isso – até porque a palavra adquiriu significado positivo –, mas a revolução islâmica de fato introduziu elementos novos e rompeu com o paradigma anterior. E por isso as autoridades do Irã também decidiram se manifestar. Porque querem expandir seu modelo de administração. Afinal, contar com um aliado importante como o Egito seria um passo muito grande rumo à liderança hegemônica regional – o mais importante objetivo geopolítico de Teerã.

O problema para o governo iraniano é que ele não detém o monopólio sobre a ideologização dos acontecimentos no Egito. Os EUA querem reverter a situação a seu favor, transformar essa história em vitória da democracia; as demais populações do Oriente Médio igualmente insatisfeitas com as respectivas administrações autoritárias buscam inspiração no Egito; e até a oposição iraniana quer aproveitar os eventos para requisitar mudanças mais profundas no país. Aliás, os candidatos derrotados por Ahmadinejad nas contestadas eleições de 2009 não conseguiram autorização governamental para organizar uma passeata em solidariedade aos egípcios.

 
No fundo, há muitas diferenças entre Egito e Irã. A primeira delas diz respeito às forças armadas. Se o governo de Teerã mantém

aparatos militares profundamente vinculados à patrulha ideológica inerente à sustentação do regime, o exército egípcio é secular, pragmático. Isso não quer dizer, de nenhuma maneira, que este cenário é permanente. Tenho escrito por aqui que há um grande apoio dos manifestantes do Egito à participação do islamismo na vida política do país. Se isso se concretizar – e nada demonstra que a Irmandade Muçulmana não exercerá papel importante no novo governo –, não é impossível imaginar uma espécie de ideologização militar.

 
Aliás, esta é a maior preocupação de EUA e Israel. Não tenho dúvidas de que o regime iraniano vai tentar algum tipo de aproximação com o novo governo do Egito. Ainda mais por conta deste vácuo de poder que se instalou no país. Quando a situação estiver mais resolvida, Teerã vai fazer questão de recordar a associação entre Mubarak e Washington. E a revolução islâmica é sempre um excelente produto de exportação.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

EUA tentam esvaziar Irmandade Muçulmana. Grupo dá passo atrás em busca de legitimidade

A entrevista do presidente americano, Barack Obama, à Fox News foi reveladora quanto à posição dos EUA em relação aos protestos no Egito. Pouco antes do Super Bowl, o maior evento esportivo do país e que atrai a maior audiência televisiva, o presidente declarou que a Irmandade Muçulmana não detém o monopólio das manifestações e não possui apoio majoritário. Esta é uma visão um tanto otimista dos acontecimentos e mostra que a Casa Branca preferiu seguir um caminho pouco produtivo.

Foto: conferência de imprensa da Irmandade Muçulmana no Cairo

Em parte, consigo entender as motivações para desviar o olhar dos fatos. É como quando temos um pesadelo muito ruim e, num lapso de consciência, fechamos os olhos com força – ou abrimos, depende do método pessoal de cada um – para retomar o controle. No final, torcemos para que o pesadelo não passe disso mesmo. O problema, no entanto, é que, como em Vanilla Sky, Obama abriu os olhos e se viu diante de um problema complicado de ser resolvido. Ao contrário do que afirmou na entrevista, há muito apoio ao islamismo político representado pela Irmandade Muçulmana; o lulístico índice de 95%. Não se pode menosprezar tal número.

Como os EUA demoraram muito tempo para se posicionar, o presidente americano decidiu seguir alguma coerência e optar por uma estratégia um tanto juvenil: em vez de acordar e pensar no que pode ser feito daqui para frente, a estratégia americana prefere investir em colocar o líder do país para dormir de novo. Isso se explica, em parte, como um método cujo objetivo final é ganhar tempo, adiar o enfrentamento. Até porque, como já escrevi por aqui, debater política com a Irmandade Muçulmana significa aceitar que grupos radicais islâmicos passem a governo; ou seja, os EUA estariam, num efeito dominó de resultados imprevisíveis, de portas abertas para a legitimação em sequência de Hamas e Hezbollah – apenas para citar os mais óbvios.

Enquanto isso, algumas leituras sobre o posicionamento da Irmandade Muçulmana: o britânico Telegraph declarou que a posição do presidente Mubarak estaria mais segura agora que o grupo islâmico voltou atrás e decidiu participar das negociações para um governo de transição. Isso faz algum sentido, ainda mais porque agora os islâmicos se dispuseram a abrir mão de que o presidente deixasse o cargo imediatamente. Se este radicalismo natural do grupo continuar a recuar, ninguém sabe como os manifestantes poderão reagir. Até porque, não custa lembrar que o movimento de massa exigindo mudanças não foi organizado pela Irmandade Muçulmana. O grupo apenas surfou sobre a sucessão de acontecimentos.

Se por um lado o islamismo político pretende abrir caminho para uma transição tranquila que lhe garanta acesso ao poder, existe a possibilidade de consequências distintas: o gesto ser interpretado como traição – reaquecendo os protestos – ; e os EUA considerarem existir um ambiente propício a negociações de bastidores com a Irmandade Muçulmana. De qualquer maneira, a complexidade do cenário aumenta bastante.

Como escrevi antes, é bastante natural que o grupo passe a assumir responsabilidades e compromissos na medida em que passa de oposição – ilegal, inclusive – a governo. Politicamente, acrescenta ainda mais elementos à pressão enfrentada pelos americanos – que vão esgotando os argumentos que impedem o diálogo aberto com o islamismo radical. O problema é que, localmente, é até bastante natural que os manifestantes que se expuseram durante todos esses dias continuem a não aceitar nada menos que a renúncia imediata de Mubarak.

Em longo prazo, a pressão popular pode exigir da Irmandade Muçulmana a adoção de medidas radicais. E isso seria teoricamente algo simples de ser realizado. Bastaria simplesmente que o grupo – já na posição de governo – ignorasse a cláusula do acordo de paz com Israel que exige a desmilitarização do Deserto do Sinai. Resta saber se as milhares de pessoas que tomaram a capital egípcia em busca por democracia e emprego estariam dispostas a aceitar tal populismo vazio.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Egito no foco da disputa entre EUA e Irã

Ontem comentei sobre a possibilidade de diálogo entre EUA e a Irmandade Muçulmana. Isso deve acontecer de alguma forma, na medida em que o grupo estará representado no futuro governo egípcio. Mesmo os americanos já consideram este fato. Tanto que autoridades do país disseram estar prontas a aceitar debater com o alto-escalão do islamismo político desde que seus membros se comprometam a abandonar as armas. E tal gesto não seria inédito na região.

Vale lembrar que esta mesma Autoridade Palestina hoje desacreditada tem origens na Organização pela Libertação da Palestina (OLP) – que, para quem não se lembra, esteve bem longe de ser um grupo de escoteiros do Oriente Médio. Mesmo o Fatah, de Arafat e do presidente Mahmoud Abbas, nunca foi tão somente um partido político. E aí existe um norte para vislumbrar um possível futuro para a Irmandade Muçulmana do Egito: assim como o Fatah, que mantém seu braço armado – as Brigadas dos Mártires de Al-Aqsa –, a Irmandade Muçulmana pode se adaptar a seu novo patamar político, assumindo publicamente compromissos razoáveis, mas ao mesmo tempo mantendo suas origens e o forte discurso antiamericano e anti-israelense.

Aliás, a verdade é que não creio que será fácil dobrar o islamismo político do Egito. Isso pode acontecer, mas vai levar algum tempo. Principalmente porque a Irmandade Muçulmana é o que, por aqui, costumamos chamar de “velha guarda”. Ela está na origem das centenas de outros movimentos islâmicos e radicais que se espalham principalmente pelo Oriente Médio, mas também estão presentes em importantes centros de população muçulmana, como Paquistão, Afeganistão e Indonésia. Romper tal tradição poderia ser interpretado como capitulação aos “interesses americanos”.

Estar no lugar da liderança da Irmandade Muçulmana neste momento não deve ser fácil. A pressão das maiores forças mundiais é grande. Se a necessidade de reconstrução do país é uma ameaça real por forçar algum tipo de compromisso com os americanos, a outra potência regional, o Irã, não tem facilitado. Se no começo das manifestações populares as autoridades da República Islâmica preferiram o silêncio, agora se sentem cada vez mais impelidas a exercer seu poder. Tanto que, nesta sexta-feira, o próprio supremo líder, o aiatolá Ali Khamenei, disse que os acontecimentos no Egito são uma demonstração do “despertar islâmico” iniciado durante a revolução iraniana de 1979. Perceberam o significado de tal declaração?
 
O que está em jogo neste momento é mais um capítulo da disputa regional entre EUA e Irã. Ou melhor, entre os modelos representados por cada um deles. Se Washington tem a seu favor a indispensável ajuda financeira fornecida anualmente ao governo do Cairo, Teerã está consciente dos valores partilhados entre suas lideranças políticas e a Irmandade Muçulmana. Não se sabe por enquanto para que lado a futura administração egípcia irá pender, mas afirmo seguramente que criar um meio-termo entre esses dois modelos – enganando Irã e EUA diga-se de passagem – é tarefa ingrata. Não acredito que a Casa Branca aceitaria manter o considerável repasse de verbas a um Egito regido pela sharia (a lei islâmica) cujo gabinete presidencial tivesse fortes laços com Khamenei e Ahmadinejad.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Mudanças no Egito e o diálogo entre EUA e a Irmandade Muçulmana

Todo o discurso que cerca a transformação no Egito é muito tentador. Principalmente para os muitos grupos políticos internacionais do Ocidente que tendem a se alinhar com os revoltosos. É o povo em busca de democracia, contra a opressão de um regime ditatorial apoiado pelos EUA, em luta por melhores condições de vida, emprego e educação. E, mais ainda, representa a ansiedade popular para desfazer a injusta equação política que manteve Mubarak e a elite do país lado a lado durante três décadas e em oposição às demandas da maioria da população.

Diante deste quadro, que líder mundial vai arriscar a própria imagem se colocando ao lado do presidente egípcio? Por mais que os primeiros dias tenham sido de muitas incertezas – e ainda há perguntas de sobra quanto ao futuro político do país –, neste décimo dia de protestos ninguém dúvida de que o processo de mudança é irreversível.

Mesmo as cenas de confronto violento entre os “aliados” de Mubarak e a multidão de manifestantes não serviram como sinal de retrocesso. Principalmente porque há informações de que o próprio presidente egípcio estaria por trás da organização e recrutamento forçado de militantes políticos – muitos deles, inclusive, seriam funcionários do governo e empregados da empresa petroquímica estatal.

E por falar em mudança, os eventos seguramente irão marcar uma profunda revisão da política externa americana. O que ninguém esperava que pudesse acontecer vai se tornar realidade num movimento de fora para dentro. O autointitulado presidente da mudança será obrigado a rever posições americanas até hoje inquestionáveis. A mais importante delas: Obama será obrigado a travar algum tipo de diálogo com a Irmandade Muçulmana. O grupo certamente estará de alguma maneira representado no novo governo egípcio. Como as revoltas são populares e pesquisa do Pew Research Center aponta que 95% dos entrevistados avaliam positivamente o islamismo político, logo não há para onde fugir.

 
E a relação entre EUA e organizações islâmicas de discursos inflamados – como a Irmandade Muçulmana, grupo que inspirou ideologicamente Hamas e al-Qaeda, para citar os exemplos mais conhecidos – representará um esforço gigantesco para ambos.

Sim, porque se Washington vai ter que ceder a este fato quase consumado, os islamismo político e muitas vezes radical vai precisar se violentar, engolir a seco e dar aos americanos alguma demonstração de flexibilidade. Seguramente, já institucionalizados no governo, seus membros não vão poder sentar sobre louros e simplesmente abrir mão da ajuda financeira de 1,5 bilhão de dólares enviada anualmente pelos EUA. Até porque o Egito enfrenta grandes dificuldades econômicas e institucionais. A Irmandade Muçulmana vai precisar assumir algum tipo de compromisso com os americanos. Por mais constrangedor que isso seja.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

O grande equívoco americano no Egito

O impasse egípcio tem sido comparado à revolução iraniana de 1979. Há um tanto de razão na análise, muito embora não compartilhe da visão de que eventos tendem a se repetir. Penso que cada caso é único, mas entendo quando leio textos que caminham por este terreno. O que de fato é bastante similar nos dois casos é a ineficiência americana em apresentar respostas rápidas e afirmativas. Há pouco mais de 30 anos, o então presidente Jimmy Carter apostou no silêncio e na associação a representantes do islamismo moderado durante o processo de derrubada popular do xá Reza Pahlevi. E todo mundo sabe como essa história terminou.

Agora, as autoridades americanas igualmente encontram grande dificuldade para tomar uma posição. No começo da revolta popular, pediram calma. Hoje, parecem ter optado por dois rumos paralelos: manter certo distanciamento e iniciar contatos preliminares com Mohamed ElBaradei – o mal menor, digamos. O professor de história militar Geoffrey Wawro resgata um episódio interessantíssimo. Durante a revolta iraniana de 1979, o então coronel Colin Powell conseguiu resumir a reação americana numa única frase: “Todo nosso investimento direcionado a um indivíduo, mais do que a um país, resultou em zero”, disse. No caso, o indivíduo em questão era o próprio xá Pahlevi.

Se 30 anos depois a administração Obama tem tentado com muita dificuldade se distanciar do presidente Hosni Mubarak, ainda reluta em apresentar respostas mais firmes. Tudo porque a Casa Branca tem muito medo de parecer incoerente, justamente por ter apoiado a ditadura egípcia durante todos os esses anos. O problema é que tal pavor freudiano retarda a tomada de ações. E, enquanto isso, o antiamericanismo popular aumenta. E, como a revolta no Egito é popular, seja lá quem emergir vitorioso deste processo certamente vai preferir se distanciar de qualquer parceria com Washington – pelo menos num primeiro momento e publicamente.

O pé atrás da administração Obama é acompanhado com um pé a frente da administração Khamenei-Ahmadinejad no Irã. Livres de qualquer traço da culpa americana, em Teerã 214 membros do parlamento iraniano assinaram um comunicado em que enviam “apoio espiritual” para os egípcios em luta contra a tirania de seus governantes. Como nunca é demais reafirmar a política externa do país, os parlamentares fazem questão de condenar os esforços de “certos países ocidentais”, assim como do “regime sionista” – claro –, em esvaziar as manifestações e separá-las dos valores islâmicos. Na República Islâmica, ninguém está muito preocupado pelo fato de existir uma enorme contradição nisso tudo: afinal, há menos de dois anos, os protestos contra a polêmica reeleição de Ahmadinejad foram reprimidos à força. E, menos ainda, as autoridades iranianas pretendem transformar o país numa democracia plena.

Como contraponto regional aos EUA e em busca de hegemonia e liderança, o Irã sabe que não pode se manter à margem deste processo. Enquanto isso, Washington prefere a distância. Como escrevi, tal atitude seria legítima enquanto nenhum dos demais atores desse o primeiro passo. No entanto, como potência mundial, os EUA não podem se permitir tal isolamento. Ainda mais porque o silêncio pode custar caro demais. Além de perder o resto de credibilidade num dos palcos geopolíticos mais importantes do planeta, expõe a contradição americana que a Casa Branca preferia que fosse esquecida: o apoio às ditaduras que aceitaram jogar regionalmente ao lado dos americanos.

O problema é que as manifestações desses dias exigem justamente a democracia que Washington sempre fez questão de simbolizar. Como os EUA podem justificar a completa falta de apoio ao movimento? Como escreve Ed Husain, membro da organização americana Conselho de Relações Exteriores, “os EUA correm o risco de serem lembrados como a democracia que abandona os democratas”. E isto seria um prejuízo incalculável para a política externa de Obama e suas pretensões no Oriente Médio.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Crise no Egito: um pouco de realidade diante do otimismo

A anulação e o silêncio são as regras do jogo político atual do Oriente Médio. Ontem comentei sobre as dúvidas que pairam em análises publicadas em veículos de todo o mundo. Tais questões não se restringem somente a quem cabe tentar entender o momento histórico da região, mas estendem-se também a governos e lideranças locais. Todos temem pisar em falso. Talvez pela primeira vez, mesmo que por motivos distintos, Israel, Autoridade Palestina, EUA, Líbano, Irã e Iraque estão unidos pelo medo de alguma forma se associarem ao lado perdedor. E, por ora, ainda que as evidências apontem a provável queda de Hosni Mubarak, ninguém sabe como isso tudo vai terminar.

Para completar, há muitas possibilidades quanto aos sucessores do presidente egípcio. Enquanto o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, orientou os membros do seu governo a permanecerem calados, o presidente Shimon Peres decidiu elogiar Mubarak por conta própria. O gesto talvez reflita um tanto de autoconfiança por seu admirável currículo político, mas pegou mal. No momento atual, mostrar solidariedade ao governante não é apenas improdutivo, mas mostra um tanto de incompreensão do quadro maior. A maior lição de hoje é que, pelo menos por ora, a bola está com as pessoas que se manifestam nas ruas. Não com lideranças políticas. E, menos ainda, com a figura mais contestada deste processo de ruptura. É claro que Israel teme a ascensão de figuras que contestem o acordo de paz entre os países, mas o melhor a fazer é esperar e ver quais os resultados deste imbróglio.

Se do lado israelense houve este escorregão marcante, os palestinos agiram com inteligência. Não apenas a Autoridade Palestina não quis se manifestar, mas também o Hamas. Ambos os grupos temem que a revolta que já tomou Tunísia e agora tem tudo para mudar a realidade de forças no Egito se espalhe para os territórios palestinos. Se a AP e o Hamas partilham algumas similaridades, a mais importante delas, sem dúvida, é que ambos prezam com afinco a disputa de poder entre si. Nenhum dos grupos cogita a possibilidade do nascimento de uma terceira via política que clame por emprego, eleições periódicas, liberdade de imprensa e a discussão de um projeto de desenvolvimento interno sério, imagina. Soa como lugar-comum a esta altura, mas mesmo com manifestantes egípcios entoando slogans contra Israel e EUA, os protestos iniciados na Tunísia parecem ter levado as populações dos distintos países árabes a ousar questionar seus problemas internos. É a percepção de que enquanto Israel e EUA estiveram no centro das manifestações, as respectivas ditaduras se perpetuaram no poder.

E aí começa a contradição com a qual Barack Obama precisa lidar. A política externa americana na região sempre teve preocupações importantes, mas restritas: segurança e terrorismo. Por mais que o discurso de Washington reafirme o clamor nacional por democracia, direitos humanos e liberdade de imprensa para todo o mundo, no Oriente Médio o pragmatismo superou esses valores. Sucessivos ocupantes da Casa Branca jamais ousaram mexer nos vespeiros de aliados fundamentais, como Egito e Arábia Saudita, por exemplo. Em troca do silêncio, os ditadores nacionais cumpriram a cartilha de impedir que os grupos terroristas locais se institucionalizassem ou usassem o aparato estatal para lançar plataformas ideológicas ou mesmo operações. Foram mantidos à margem do sistema, banidos da política local.

Após 30 anos de apoio financeiro a Mubarak, a única alternativa americana é interferir o mínimo possível. E aguardar o resultado disso tudo para pensar em qual caminho seguir. Até porque os EUA cometeram um erro estratégico: nunca imaginaram – ou se o fizeram não agiram – que as oposições poderiam virar o jogo. E, por isso, não estreitaram os laços com os distintos grupos.

Muito embora exista uma tentativa de veículos de imprensa de apresentar Mohamed ElBaradei – ex-diretor geral da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) – como o representante mais palatável aos ocidentais, é importante fazer duas ressalvas: primeiro quanto a sua atuação fortemente antiamericana durante o processo que buscou justificar a invasão dos EUA ao Iraque, em 2003, e pela qual levou o prêmio Nobel da Paz dois anos depois; segundo, assim como qualquer oposicionista que venha a liderar a realidade posterior a Mubarak, ElBaradei sempre deixou claro que irá incluir a Irmandade Muçulmana no novo cenário político.

Como também escrevi ontem, Irã, Líbano e Iraque se mantêm silenciosos porque a situação lhes é favorável. Mas não apenas por isso. Todos os países temem que um governo egípcio popular se transforme em modelo para toda a região. Irã, Líbano e Iraque aprovam a participação da Irmandade Muçulmana, mas não uma revolução liberal que adote medidas “extremas”, como a permissão da existência de um jogo político plural com partidos de posição e oposição, e libere o trabalho da imprensa. Aí também é demais.

Por mais otimismo que exista neste momento – e ele é em parte justificado –, não creio numa transformação plena da realidade no Egito e, menos ainda, nos demais países da região. Principalmente porque qualquer vitorioso que assumir a presidência do país precisará assumir muitos compromissos. E numa região conflituosa e com interesses distintos, irá precisar se acomodar à força e demandas dos vizinhos e dos EUA. Não é produtivo imaginar que, depois de 30 anos, o Egito passará a ser uma ilha de democracia entre os Estados árabes e islâmicos do Oriente Médio.