quinta-feira, 31 de março de 2011

Violência na Costa do Marfim: os mortos que não comovem a comunidade internacional

Há algum tempo venho escrevendo sobre contradições internacionais. É claro que costumo variar os assuntos abordados por aqui, mas todos os eventos que cercam o Oriente Médio nesses meses de agitação giram em torno de alguns fatores: importância estratégia é um deles. E, quando se coloca peso sobre países, revoltas e tentativas de emancipação política, a comunidade internacional se apresenta para participar. E entendam como comunidade internacional os atores mais relevantes neste cenário: EUA, União Europeia, ONU, Otan, Liga Árabe são alguns deles. Em comum, a decisiva parcialidade de ações e os tão repetidos “interesses estratégicos”. O termo foi honestamente exposto por Obama há poucos dias, quando discursou para explicar ao público americano os motivos que justificaram a intervenção na Líbia – liderada e articulada por Washington.

E nas estratégias internacionais as atitudes costumam mesclar ideologia e pragmatismo. Já disse isso por aqui, mas este é um momento particularmente interessante para focar sobre o assunto. Tudo isso porque este também é um momento de contradições. Talvez isso soe estranho aos corações mais puros, mas a verdade é que a incoerência está na raiz do pensamento político. Principalmente quando se fala de potências internacionais.

Justamente ontem comentei sobre as declarações do presidente sírio, Bashar al-Assad, diante de entusiasmados parlamentares. Acho mesmo que a confiança de Assad se deve, em boa parte, à interpretação de que a comunidade internacional não está disposta a uma nova incursão militar no Oriente Médio. E aí há certa frustração entre os que esperavam uma cruzada (com o perdão do termo) contra ditadores que reprimem os próprios cidadãos sem qualquer apreço pelos direitos humanos. Esta missão em nome da justiça não vai acontecer, é bom que se diga.

E eis que há um exemplo excepcional quanto a essas contradições sobre as quais gosto de debater. Enquanto houve justificada comoção humanitária pela fragilidade em que se encontrava a população líbia, a sudoeste de Trípoli, no mesmo continente africano, a Costa do Marfim atravessa situação semelhante (para não dizer pior). Desde que o presidente Laurent Gbagbo (foto) foi derrotado, em novembro do ano passado, a violência tomou conta do país. Cálculos de autoridades das Nações Unidas apontam 462 mortos e mais de um milhão de refugiados.

Somente nesta quarta-feira o Conselho de Segurança da ONU decidiu impor sanções a Gbagbo. As forças de paz da organização foram autorizadas a “usar todos os meios necessários para proteger civis sob risco iminente de violência física”. Isso lembra alguma coisa, certo? Sim, a resolução que acabou por se transformar no passaporte à intervenção na Líbia. A diferença, no entanto, é que houve um atraso de cinco meses na Costa do Marfim.

E se há contradições políticas – e isto é um fato mesmo –, fica a exposição de outro aspecto importante e lamentável. É natural que Estados nacionais tenham seus próprios interesses. Agora, quando a ONU passa recibo de que está completamente desvirtuada de seus objetivos iniciais, fica o alerta de que ela perdeu sua legitimidade enquanto responsável pela manutenção da paz no mundo. Porque se a ONU considera que há diferença entre o valor da vida de líbios e marfinenses, este é um caminho sem volta. Só não enxerga quem não quer.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Discurso de Assad mostra que repressão síria não deve recuar

E Bashar-al Assad decidiu se pronunciar. Aos que imaginavam – e me incluo neste grupo – o anuncio de mudanças profundas, o presidente sírio fez questão de desapontar mais uma vez. No entanto, diante de uma plateia de seguidores, não entrou em detalhes quanto a reformas. Mas fez questão de enviar mensagem de que não irá manter seu aparato militar de braços cruzados diante da escalada das manifestações.

 

Num primeiro momento, logo após o surgimento dos primeiros focos de insurgência, o governo sírio apontou com a possibilidade de pôr em prática um pacote de medidas: aumento dos salários de funcionários públicos e relaxamento das restrições às comunicações estavam entre as alternativas que Assad imaginava que pudessem conter os protestos. O problema é os presidentes depostos de Tunísia e Egito já haviam tentado acalmar os ânimos de seus cidadãos com as mesmas determinações. E todo mundo sabe que nada disso adiantou.

Talvez por isso Assad tenha optado por outro rumo. Em vez de tentar correr atrás do tempo perdido, preferiu reafirmar que o poder está a seu lado. E como tenho escrito durante esta temporada de crises, nada mais importante aos resultados das manifestações do que saber a qual das partes envolvidas pende o poder coercitivo. E este não é um fator determinante somente no mundo árabe, mas em todas as ocasiões em que há disputas internas em qualquer país. No final das contas, um dos aspectos mais importante dessas disputas é a fidelidade das forças armadas. Para ser mais claro, Mubarak só caiu porque o exército se recusou a combater os manifestantes populares.

Por ora, há um enorme ponto de interrogação quanto aos destinos da crise síria. As palavras de Assad podem ser interpretadas como ameaça. Ao dizer que vai exercer sua grandiosidade moral e perdoar os que até agora protestaram contra o regime, também deixa implícito que tudo o que ocorreu até agora é o limite do que está disposto a tolerar. Para bom entendedor, o aviso está dado. Diante de demonstrações ainda mais contundentes, Assad irá usar o monopólio da força a seu dispor.

Em boa parte, ao contrário de Khadafi, o presidente sírio tem a seu favor as palavras de Hillary Clinton e o discurso de Obama. Pode parecer estranho – e de fato é –, mas a secretária de Estado ter ido a público laurear Assad como “reformista” acabou por servir como chancela a seu governo. O mesmo vale para as palavras do presidente americano, que deixou claro não ter intenções de realizar novas incursões no Oriente Médio de forma a interromper eventuais conflitos internos onde os direitos humanos estejam em risco. É claro que não foi esta a intenção das autoridades americanas, mas foi assim que o presidente sírio interpretou a mensagem. E, no fundo, ele não está completamente errado.

Se antes Assad se fixou no quadro interno, agora parece ter analisado a figura mais ampla. E ela é favorável à Síria. Não é de se ignorar o fato de que a maior potência militar do planeta não está disposta a atacar o país. O presidente sírio não é bobo. Aprendeu com as lições de Tunísia e Egito e não dá brechas para que suas forças armadas se solidarizem com os manifestantes. Ao mesmo tempo, deixa claro que leva em consideração algum tipo de coerção aos protestos. E sabe que não pode perder a mão quanto a intensidade da violência nas repressões. Mas pode ficar tranquilo porque Washington o considera um “reformista”.

terça-feira, 29 de março de 2011

As entrelinhas da justificativa americana para atacar a Líbia

O presidente Obama tornou pública a argumentação da Casa Branca para justificar a ação na Líbia. Por mais que todo mundo já conheça as razões dos EUA, era mesmo necessário algum tipo de escopo teórico que deixasse mais ou menos claro como Washington percebe seu posicionamento neste novo Oriente Médio. Em meio à confusão generalizada – e não me refiro somente aos distúrbios regionais, mas também ao clima de incerteza que paira nas cabeças dos governantes das potências ocidentais –, os americanos não se fizeram de rogados: Obama acrescentou ainda mais elementos a este cenário de insegurança política.

 

Há uma enorme contradição prática envolvendo as palavras do presidente americano. Enquanto mais uma vez repetia o mantra de que os EUA exercem papel coadjuvante na ofensiva, dados revelados pelo New York Times mostram o oposto: dos 200 mísseis Tomahawk disparados contra as forças de Khadafi desde o início dos ataques, em 19 de março, 193 foram lançados por forças americanas; entre as munições de precisão, de 592 disparos, 455 couberam aos EUA. Esses números evidenciam a liderança militar americana, não simplesmente a participação das forças do país.

Mas é claro que a posição de Obama não poderia ser diferente. Há alguns pontos importantes que levaram Washington a insistir neste processo, digamos, de automarginalização: a um ano do ciclo eleitoral – onde o atual presidente deve lutar pela reeleição –, Obama precisa reafirmar-se como o líder da mudança. E, em meio à crise econômica americana, distanciar-se da imagem de guerreiro do Oriente Médio não apenas dissocia o atual ocupante da Casa Branca do anterior (até porque política internacional é somente uma questão dentre tantas outras que serão colocadas em debate): passar o cetro aos outros membros da coalizão pode também reduzir custos financeiros. E certamente os 500 milhões de dólares gastos na Líbia até agora serão usados pelo partido Republicano durante a campanha.

É claro que há também uma tentativa de buscar legitimidade internacional. Por isso o encontro desta terça-feira entre altas autoridades de 40 países que se reuniram para discutir a crise Líbia acontece em Londres, não em Washington. Obama deixou claro em seu discurso a necessidade de estudar caso a caso eventuais intervenções. Ele não creditou apenas a questões morais esta nova ofensiva, mas também “aos nossos interesses” (interesses americanos, que fique claro).

De fato, os EUA têm procurado usar a Líbia como espécie de exemplo dos muitos fatores que cercam as diretrizes militares americanas sob o comando de Obama. O país só é alvo das ações porque Khadafi estava pronto a sacrificar seus próprios cidadãos em nome da permanência no cargo; havia risco aos países vizinhos recém-libertados dos próprios ditadores (Tunísia e Egito – cujos líderes autoritários contavam com a complacência de Washington, diga-se de passagem); o ditador líbio é um histórico inimigo dos EUA, inclusive tendo patrocinado atentados terroristas a cidadãos do país; e os opositores líbios demonstram compartilhar “valores” americanos.

No fundo, os EUA querem deixar o mais evidente possível que a ofensiva na Líbia não é um padrão, mas que os acontecimentos no país se encaixaram ao pensamento internacional de Obama – e não o contrário. Esta é uma forma também de mandar um recado interno e externo. Do ponto de vista da política doméstica, a mensagem aos contribuintes é de que o governo tem pleno respeito aos problemas enfrentados pelos cidadãos comuns e que seus impostos não serão “queimados” em aventuras internacionais que não sejam fundamentais aos interesses do país. Esta linha de raciocínio busca também cortar pela raiz eventuais exercícios de argumentação dos republicanos.

O discurso de Obama mira também os acontecimentos na Síria. Está claro que não é interesse americano se intrometer nos assuntos de um Estado vinculado a um enorme problema no Oriente Médio (leia o texto publicado ontem). Ao “customizar” o caso Líbio, os EUA tentam fortalecer suas próprias posições. Se é tarefa árdua encontrar alguma coerência no jogo político, a Casa Branca optou por “inventar” a sua própria.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Protestos na Síria podem expor contradições da comunidade internacional

É natural a grande expectativa criada em torno das manifestações populares contra o governo sírio. Nesta onda de descontentamento que toma conta do Oriente Médio, é surpreendente a coragem demonstrada pelos manifestantes sírios para desafiar o regime. O presidente do país, Bashar al-Assad, mantém controle rígido sobre todas as atividades nacionais, além de contar com forte aparato de segurança. Suas várias agências de espionagem não apenas contribuem para o permanente clima de tensão, como também encontram amparo legal.

 

Após o golpe de Estado que, em 1963, levou o Partido Baath ao poder, Hafez Assad – de quem Bashar herdou o cargo – criou um artifício que sustenta esta situação: a declaração de um estado de emergência. Na prática, a manobra política tornou possível a consolidação de leis que impedem qualquer tentativa de oposição. Assim, o governo pode exercer quando e como quiser o “direito” de monitorar comunicações pessoais entre cidadãos, por exemplo. Além disso, instaurou o controle estatal sobre os meios de comunicação, permite ao governo julgar civis em cortes militares, proíbe a formação de partidos políticos (claro!) etc.

Nada disso, no entanto, impediu os protestos. A diferença da situação síria para as demais é que há alguns pontos sensíveis – principalmente aos americanos: os EUA vinham tentando uma aproximação com Damasco ou pelo menos um relaxamento de tensões. A Síria é um ator-chave no grande conflito geopolítico regional. Claro que o Egito também era – e todo mundo sabe que Washington demorou a se pronunciar sobre a crise envolvendo o aliado Hosni Mubarak –, mas a Síria é um problema maior.

Além de se transformar no primeiro palco de protestos que faz fronteira com Israel e que legalmente se mantém em estado de beligerância com os israelenses desde a fundação do país, a força militar síria não pode ser ignorada. Por mais que a supremacia bélica do Estado Judeu no Oriente Médio seja incontestável, numa eventual guerra, as forças sírias seriam as que causariam maior preocupação a Israel.

Do ponto de vista estratégico, a Síria também é peça fundamental do tabuleiro do Oriente Médio: a proximidade de laços que mantém com o Irã levanta suspeitas quanto as intenções do país. Se por um lado Assad se mostrou aberto a receber congressistas americanos e a reabrir a embaixada dos EUA em Damasco, o presidente sírio está profundamente vinculado a Mahmoud Ahmadinejad. Para complicar ainda mais, o último ano deixou ainda mais claro o estabelecimento de um eixo de poder oposto aos interesses regionais americanos: a aliança entre Irã, Síria e Turquia.

Por conta de todos esses elementos, a postura da comunidade internacional está em xeque. Se Assad decidir promover carnificina contra seus próprios cidadãos, e EUA, União Europeia e Otan não fizerem nada, a incoerência estará exposta. Por mais que política seja um jogo de pragmatismo mesmo, ninguém quer ter suas contradições comprovadas. E a bola está nas mãos de Assad agora. É claro que ele não gostaria de enfrentar o processo de insurgência popular, mas talvez tais manifestações tenham dado ao presidente sírio uma tremenda vantagem estratégica.

sexta-feira, 25 de março de 2011

As interpretações equivocadas quanto ao voto brasileiro contra o Irã

Pronto. Dilma deu o pontapé inicial em suas intenções internacionais. Para a imprensa brasileira, o fato de o país ter acompanhado outros 21 votos que propõem o envio de um relator ao Irã para investigar violações aos direitos humanos é uma espécie de sentença clara: a política externa brasileira mudou, a atual presidente rompeu com as diretrizes do governo anterior e, finalmente, as muitas páginas escritas por oito anos de Celso Amorim à frente do Ministério das Relações Exteriores são águas passadas. Digo logo de cara: tais premissas estão erradas.

Foto: Lula, Ahmadinejad e Erdogan em maio do ano passado

Em primeiro lugar, em nenhum momento dos oito anos de Lula no Planalto enxerguei a proximidade com Teerã como simples construção de laços de amizade com Mahmoud Ahmadinejad. Esta conclusão precipitada e um tanto alardeada por aqui reflete a incapacidade de uma leitura mais complexa da própria diplomacia brasileira. Talvez fruto do preconceito a Lula, não sei, talvez falta de vontade mesmo, o fato é que as relações entre Brasil e Irã nunca foram vazias. E isso é válido para os dois lados.

Do ponto de vista iraniano, aliar-se ao Brasil constituía parte dos esforços de diversificar parceiros comerciais e políticos. Bancando programa nuclear controverso, as autoridades da República Islâmica jamais imaginaram que a comunidade internacional fosse cruzar os braços. E não me refiro simplesmente à possibilidade de ataques militares contra suas usinas, mas também às sanções colocadas em prática. O Brasil era rota de fuga comercial, bancária e política. Sendo que este último item atendia também a interesses brasileiros. Os iranianos sabiam disso. E investiram na relação. Não apenas assinaram acordos de cooperação, como também ampliaram o montante das relações econômicas.

Nos últimos oito anos, o volume negociado entre os países passou de 500 milhões de dólares para 1,2 bilhão de dólares. As exportações brasileiras para o Irã aumentaram 77% em 2010.

A parceria se consolidou, mas, em nenhum momento, o Brasil se assumiu como o maior defensor do Irã no planeta. E o motivo para isso é bem simples: o Brasil, assim como a maior parte dos países do mundo, mantém diretriz internacional baseada numa plataforma que mescla ideologia e interesse. E, assim também como a maior parte dos atores internacionais, a balança tende com frequência ao pragmatismo. Escrevi na terça-feira que buscar coerência política é um exercício que fatalmente ocasionará frustração. É com este olhar que se deve interpretar o jogo.

Por exemplo, a Folha de São Paulo publica uma ótima entrevista com o ex-ministro das Relações Exteriores Celso Amorim (leia aqui) em que ele recorda, com razão, uma recente ambiguidade americana em relação ao Brasil: o apoio à pretensão da Índia de ocupar assento permanente no Conselho de Segurança da ONU é contraditório, na medida em que o país possui armamento nuclear. Ao mesmo tempo, Washington mantém discurso condenando a proliferação deste tipo de arsenal. Entre os BRICs, somente o Brasil não dispõe de armas atômicas, nem se mostra disposto a desenvolvê-las.

Seja como for, por mais que não pareça, a atual atitude brasileira de apoiar o envio do relator de direitos humanos ao Irã é simplesmente um prolongamento do lastro internacional anterior. É até bem simples de justificar esta minha visão: como escrevi, o Brasil optou pelo pragmatismo nos anos de Lula. E isso não mudou. Até este momento, a aliança com o Irã foi importante. Vale lembrar que o momento de maior protagonismo brasileiro no cenário internacional aconteceu em maio passado, quando, ao lado da Turquia, o então presidente Lula forjou um acordo nuclear com Teerã. Por mais polêmico que o episódio tenha sido, acabou por reforçar a posição brasileira no jogo geopolítico.

Ao que parece, agora há uma mudança de interpretação. Afinal, o país está consolidado como potência regional e ator global. E tais predicados requerem também responsabilidade. E não simplesmente por questões ideológicas, de forma alguma. Mas justamente para mostrar que o Brasil, que se pretende ocupante de uma vaga permanente no Conselho de Segurança, é um jogador de peso independente. Manter-se fiel ao Irã em qualquer circunstância poderia confundir visões. O que fica de tudo isso é simplesmente a reafirmação do pragmatismo do Itamaraty. E esta é uma herança do governo Lula, não uma ruptura.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Nova escalada de violência entre israelenses e palestinos

O conflito entre israelenses e palestinos estava em baixa. A certa calmaria em que a região se encontrava até esta semana era notavelmente contrastante com a erupção de protestos no mundo árabe. Pela primeira vez em anos, o conflito árabe-israelense não era o principal fator de instabilidade regional. E, claro, isso é muito ruim para as autocracias que até outro dia davam as cartas no Oriente Médio. Como passo adiante qualquer tipo de teoria conspiratória, devo dizer de cara que não acredito que a nova escalada de violência seja a resposta orquestrada dos países árabes à tensão interna que estão enfrentando.

 

Mas isso pouco importa, é bom dizer. O fato é que principalmente o atentado terrorista desta quarta-feira, em Jerusalém (foto), retoma a velha rotina de lideranças regionais de colocar o conflito entre israelenses e palestinos no centro de todos os muitos problemas da região. Um aspecto muitíssimo curioso em torno da explosão que vitimou uma turista britânica é que nenhum grupo extremista assumiu a autoria do ataque – algo bastante raro.

Mesmo autoridades de Israel cogitam a possibilidade de o Hamas não estar diretamente envolvido na ação. De qualquer maneira, essa indefinição quanto aos agentes deste novo ato em Jerusalém não muda o fato de que Israel e o próprio Hamas voltaram a se enfrentar com mais intensidade nas últimas semanas. Como de costume, os ataques cometidos pelas partes acabam por gerar retaliações que por sua vez incentivam nova escalada de violência. Este é o momento atual.

A diferença deste estágio para o de outros ciclos semelhantes é que a situação dos principais atores mudou. Enquanto se assiste a novas batalhas envolvendo mísseis palestinos e retaliações da força aérea israelense, certo inconsciente coletivo recorda a Operação Chumbo Fundido, de dezembro de 2008, quando Israel invadiu Gaza após anos de disparos palestinos contra o sul de seu território.

Não acredito numa reedição deste tipo de ação por parte de Israel por algumas razões: o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu não vai querer atrair o foco para si enquanto a região atravessa período de mudanças tão significativas. As autoridades israelenses estão satisfeitas com este momento de relativa calma e crescimento econômico. Além disso, o país está mais isolado politicamente e mesmo a histórica relação com os EUA andou estremecida. Após episódios importantes, como o do navio turco que tentou furar o bloqueio a Gaza, o apoio internacional a Israel caiu ainda mais.

Nada disso, no entanto, significa a impossibilidade de novo confronto. A questão é que Israel e o Hamas não parecem dispostos a levá-lo adiante agora. O grupo palestino também aguarda mais dados quanto ao novo cenário regional. Por exemplo, a definição de quem passa a deter o poder no Egito é importante para a própria sobrevivência do Hamas – afinal, há grande possibilidade de mudanças definitivas. Enquanto o ex-presidente Hosni Mubarak jogava com os americanos e impunha controle rígido na fronteira entre Egito e Gaza, novos mandatários no Cairo podem mudar tais diretrizes.

E por mais que o Hamas não tenha abandonado a ideologia de confronto com Israel, seus dirigentes ainda sentem os duríssimos golpes que Israel impôs à infraestrutura militar em Gaza. O grupo quer revanche, mas não agora. Inclusive há sinais de que se prepara para novo confronto. Notícia completamente ignorada por aqui dá conta da apreensão pela marinha israelense, na última semana, de um cargueiro da Libéria com 50 toneladas de armamento. A embarcação viajava da Turquia à Alexandria, no Egito. As armas apreendidas apresentavam manuais de instrução escritos em persa...

quarta-feira, 23 de março de 2011

Liga Árabe decepciona EUA, França e Reino Unido

Há uma grande confusão em torno das operações que a coalizão vem conduzindo na Líbia. Mesmo com objetivos um pouco mais claros em relação às intenções dos ataques da chamada aliança internacional, o apoio demonstrado pela aprovação da resolução 1973 no Conselho de Segurança da ONU ainda não se traduziu em atitudes engajadas. Certamente, principalmente EUA, França e Reino Unido esperavam que mais países decidissem aderir aos esforços militares. E isso ainda não aconteceu.

E não aconteceu devido a este momento geopoliticamente confuso no Oriente Médio. Por exemplo, a própria Liga Árabe mostra profunda ambivalência em suas posições. Se antes do primeiro míssil atingir Trípoli a organização se mostrava favorável ao estabelecimento de uma zona de exclusão aérea sobre o território líbio, após o início da ofensiva o secretário-geral Amr Moussa (foto) passou a condenar os ataques. É claro que há alguma distância entre colocar em prática uma zona de exclusão aérea e partir para uma guerra aberta na Líbia. Mas é preciso lembrar que, teoricamente, a preocupação do Conselho de Segurança era proteger a vida de civis, que têm sido atacados, olha só, pelos aviões de Khadafi. Portanto, para evitar que isso continue a acontecer, é necessário algum embate militar.

Moussa não ignora esses dados, mas parece muito mais preocupado com suas pretensões políticas no Egito, onde planeja ser candidato à presidência do país. Como discuti tantas vezes durante as manifestações populares no Cairo, jamais houve sinalizações quanto a qualquer tipo de simpatia aos EUA. Muito pelo contrário. Os mesmos egípcios que lutaram pela queda de Hosni Mubarak não esquecem o apoio histórico da Casa Branca ao presidente deposto.

É claro que a Liga Árabe não é uma mera expressão das ambições políticas de seu secretário-geral, muito pelo contrário. Ela mesma tem atuação regional importante. E expõe suas próprias contradições. Por exemplo, jamais requisitou que seus 22 países-membros (parte importante deles ditaduras e monarquias absolutistas) se empenhassem em realizar mudanças ou abertura política.

Como este assunto tem sido ignorado, acho que vale dizer que há apenas um ano a própria Liga Árabe se reuniu na Líbia. E não apenas isso, mas também entregou a Khadafi o cargo rotativo de presidente da entidade.

De certa forma, quando a organização decide não apoiar a ofensiva internacional (e, é melhor que se diga, muito mais uma aliança ocidental nos moldes da que levou a cabo as guerras de Iraque e Afeganistão), ela pretende de alguma maneira se posicionar neste novo cenário – simultâneo às manifestações em muitos países árabes, vale dizer. E a posição da Liga Árabe é conservadora, como não poderia deixar de ser. A entidade se coloca como observadora das mudanças e, demonstrando cautela, prefere ficar no meio do caminho, aguardando a conclusão desses eventos.

terça-feira, 22 de março de 2011

A Líbia no centro da disputa geopolítica do Oriente Médio

Não é a primeira vez que toco neste assunto, mas considero importante retomá-lo. Neste momento de nova guerra no Oriente Médio, é preciso deixar de lado os chavões que tentam se encaixar em muitas análises. Definitivamente, o petróleo não é o motivo mais relevante que motivou a aliança militar comandada pelos EUA a intervir na Líbia. E digo isso não para aplicar maniqueísmos. A luta em curso tampouco demonstra a grande preocupação das potencias pelos civis mortos por Khadafi.

Foto: destroços de avião americano na Líbia

Até porque, nunca é exagero lembrar, há outras tragédias humanitárias que jamais receberam a devida atenção. O caso mais simbólico é o de Darfur, no Sudão.

O que está em jogo agora é o poder das revoltas populares nos países árabes e também a reação dos governos às tentativas de mudanças. Se no começo do processo – ainda na Tunísia – os EUA optaram pelo silêncio, hoje nenhuma autoridade americana ousaria ir a público questionar a legitimidade das reivindicações. Política é assim mesmo. Buscar coerência em cada uma das atitudes de governos certamente ocasionará algum grau de frustração.

Hoje, o governo americano não apenas mudou seu discurso, como também optou por se aliar a um dos lados. E o lado que está no comando costuma ser a opção vencedora eleita pelas administrações. Não apenas os EUA, mas os países que compõem a coalizão precisam vencer Khadafi para mandar um recado claro aos demais Estados da região: o retorno ao status anterior não é uma opção. Pelo menos não com a aplicação da estratégia de guerra civil colocada em prática pelo ditador líbio.

A disputa em jogo é estratégica do ponto de vista principalmente de Washington, mas também esbarra na velha guerra geopolítica. E os sinais estão claros. Por exemplo, a Casa Branca silencia quanto aos protestos nos aliados Bahrein, Arábia Saudita e Iêmen. E sob este ângulo, a loucura de Khadafi ao decidir atacar os próprios civis acabou por dar o sinal que os EUA precisavam para ter alguma participação nos acontecimentos. Mudanças políticas deste porte numa região tão importante não poderiam ser ignoradas pela maior potência do planeta, certo?

E como o jogo internacional ostenta uma diversidade de atores, a oposição a Washington que se consolida neste cenário também tem agido. Como a Turquia demonstra nos últimos anos, seu maior interesse é forjar alianças com os Estados islâmicos opostos aos EUA. Por conta disso, tem dificultado as ações americanas no que é mais caro à Casa Branca: como escrevi ontem, há um discurso único de autoridades do país de forma a demonstrar que não há intenção de se manter na posição de liderança da atual ofensiva.

Ancara procura impedir que Obama passe o bastão a outro membro da coalizão com facilidade. E a Turquia pode fazer isso, na medida em que usufrui de característica única no cenário internacional: ao mesmo tempo em que aprofunda relações com Irã e Síria, é membro da OTAN (a aliança militar ocidental).

A Líbia é, neste momento, o palco principal de uma disputa geopolítica que está em curso no Oriente Médio muito antes dos eventos que provocaram a queda dos ditadores na Tunísia e no Egito. Khadafi acabou por se transformar, sem querer, na bola da vez. E isto tem muito pouco a ver com petróleo.

segunda-feira, 21 de março de 2011

A primeira guerra de Obama: perguntas a serem feitas

Antes que se faça qualquer comparação entre a ofensiva na Líbia e as guerras de Iraque e Afeganistão, é preciso analisar as situações separadamente. O primeiro fato a ressaltar e que tem sido repetido com frequência desde os primeiros ataques às forças de Khadafi é que esta é a primeira guerra de Obama. Ao contrário dos confrontos anteriores herdados de Bush –, o atual presidente americano esteve reticente, mas acabou optando por conceder autorização para a ofensiva no norte da África.

Agora vale evidenciar algumas características que marcam a administração Obama neste momento de crise internacional: a Casa Branca só autorizou os ataques após amplo debate no Conselho de Segurança da ONU, o que por si só já é muito significativo. Enquanto o processo que culminou com a derrubada do regime de Saddam Hussein acabou por provocar estranhamento e esfriamento nas relações entre Washington e as Nações Unidas, a decisão de atacar as forças leais ao ditador líbio reafirma o papel central da ONU em seu objetivo principal: a manutenção da paz.

Além disso, no ano anterior à eleição presidencial nos EUA, é uma demonstração prática dos discursos do presidente americano que seduziram multidões no país e também no exterior: um líder disposto a governar a maior potência mundial sem deixar de lado as organizações multilaterais – e a ONU é, sem dúvida, a mais importante delas. Não acredito que tenha sido ocasional o longo intervalo entre o início dos ataques de Khadafi contra os dissidentes e a decisão internacional – liderada pelos EUA – de contra-atacar. Washington esticou a corda o máximo que pôde de forma a evidenciar que a intervenção internacional era a única forma de poupar mais vidas de civis.

Por conta disso, por mais que a Liga Árabe tenha criticado os ataques, não creio que, pelo neste primeiro momento, haja grande oposição popular à intervenção na Líbia. A articulação entre EUA, França e Grã-Bretanha tentou deixar claro que o objetivo principal é conter os ataques indiscriminados a civis. Acho que a posição americana de ressaltar que se trata de uma aliança entre países e que o papel das forças dos EUA é mais discreto tem como objetivo justamente evitar levantar suspeitas quanto aos objetivos da ação.

Oficiais americanos estão particularmente preocupados em deixar claro que o país é quase coadjuvante na empreitada, fornecendo suporte logístico, reabastecimento a aviões aliados e atuando na área de inteligência. Tudo isso é parte da estratégia internacional que Obama pretende imprimir como sua marca.

Há alguns problemas teóricos importantes que envolvem tal discurso: qual o objetivo de fato da ofensiva? Porque proteger civis é muito bonito e justificado, mas o que isso significa na prática? Forçar Khadafi a um cessar-fogo ou derrubá-lo (ou mesmo levar em consideração que ele mesmo é um alvo dos ataques)? E se a resistência durar mais tempo do que o previsto? As forças internacionais trabalham com esta possibilidade? E quais seriam os passos seguintes? Uma intervenção por terra que certamente causaria um número considerável de mortes?

sexta-feira, 18 de março de 2011

Obama no Brasil

A visita de Barack Obama ao Brasil é completamente diferente das visitas de outros presidentes americanos ao país. Certamente pela primeira vez é Washington quem precisa mais de Brasília, não o oposto. E isso não é pouco. Se há alguma confusão quanto aos objetivos de Obama por aqui, vale deixar claro: para os empresários dos EUA, o Brasil é hoje a terra da oportunidade. E não somente devido aos recursos naturais, mas por conta da ascensão econômica da população brasileira.

foto: Rinaldo Américo, o sósia brasileiro de Obama

Segundo dados da Casa Branca, as exportações para as Américas Central e do Sul cresceram 86% entre 2004 e 2009. A perspectiva é que elas dobrem nos próximos cinco anos. Bens e serviços americanos no Brasil atingiram a cifra de 50 bilhões de dólares em 2010 e há 57 bilhões de dólares em investimentos diretos dos EUA por aqui. O que a Casa Branca não divulga é também uma das razões da viagem: justamente na década de maior crescimento brasileiro, os EUA perderam terreno como foco de importações. Se em 2002 produtos americanos respondiam por 22% do total de importações brasileiras, dados mais recentes registram queda do índice para 15%.

Obama veio amaciar os corações brasileiros por dois motivos: primeiro, reconhece que o Brasil atravessa momento único em todas as áreas – inclusive na participação no jogo político internacional; segundo, porque brigar pela atuação de empresas americanas é brigar por empregos para os americanos. E nunca é demais lembrar: o tempo sempre passa rápido e a eleição presidencial americana acontece já no ano que vem.

E vejam só que curioso: enquanto os EUA ainda tentam colocar a cabeça para fora d’água, o Brasil atravessa um momento de alto crescimento econômico e, tão importante quanto, ostenta a menor taxa de desemprego em uma década. Este é o ambiente que envolve o encontro de Obama e Dilma. Há também outras questões importantes: Brasil e EUA são os dois maiores produtores de etanol no mundo. Enquanto o produto brasileiro é mais barato, o americano – derivado do milho – custa mais caro. Por isso, os americanos impedem a entrada do etanol nacional no mercado. Este é um ponto sensível nas relações recentes entre os países e certamente será abordado de alguma maneira.

Além disso, a Casa Branca encontrou uma forma inteligente de atingir duas questões de uma só vez: Obama vai ressaltar as boas experiências de Brasil e Chile durante o processo de transição de regimes autoritários para governos democráticos. Como sempre os discursos do presidente americano reverberam, esta mensagem é direcionada também aos países do Oriente Médio em crise política. Por conta disso também a viagem à América Latina não foi cancelada. Se por um lado parece um mau momento para o presidente deixar Washington, isso pode dar a entender uma postura menos incisiva – algo demandado pelos críticos aos EUA que interpretaram a vitória de Obama como possibilidade de mudança após oito anos de governo Bush.

O presidente americano também estará em Chile e El Salvador. Como demonstração desta mudança em curso nas relações internacionais, as visitas a Chile e Brasil tratam de assuntos estratégicos bastante típicos dos países desenvolvidos: relaxamento das exigências para concessões de vistos de entrada nos EUA, incremento do comércio bilateral e discussão de objetivos geopolíticos. Já em El Salvador, Washington vai se deparar com a velha América Latina. Os temas a serem debatidos com o presidente Mauricio Funes devem ser imigração ilegal, pobreza e violência.

quinta-feira, 17 de março de 2011

O mundo ideal - e irreal - sem energia nuclear

O mundo está determinado a dar ponto final ao uso de energia nuclear. Há uma onda de reflexão e boa vontade que coloca governos e entidades públicas e privadas dispostas a substituir todas as matrizes energéticas tradicionais por outras menos poluentes. A justificada comoção em torno da tragédia japonesa tem provocado manchetes que dão conta da imersão mundial na “Era de Aquarius”. Como costuma acontecer, é preciso refletir e buscar dados antes de fazer afirmações bombásticas. E quando se pesquisa com um pouco mais de dedicação, chegamos à triste conclusão que não será nada fácil mudar a forma como a humanidade produz a energia da qual nos tornamos completamente dependentes.

O primeiro dado é bastante circunstancial: neste momento, há 220 usinas nucleares em construção no planeta. O investimento é tão alto que simplesmente colocá-las abaixo não é uma opção. Mesmo sendo críticos deste tipo de fonte energética, os EUA não consideram a possibilidade de abrir mão de suas próprias usinas. Tanto que o orçamento americano prevê garantias de empréstimos no valor de 36 bilhões de dólares a empresas privadas dispostas a investir no setor. A questão agora é saber se haverá empresas com poder econômico dispostas a arriscar num momento em que a humanidade teme os efeitos de mais uma hecatombe.

Se há um lado positivo nisso tudo, é perceber que a discussão interna nos EUA aumentou. Se a posição da Casa Branca sobre aquecimento global é discreta, os eventos no Japão têm impulsionado o debate quanto a novas fontes de energia. Mas isso não é suficiente.

O fato é que o mundo não pode continuar a existir da mesma maneira abrindo mão das usinas nucleares. É triste, não deveria ser dito neste momento difícil, mas é a verdade, lamentavelmente. Por exemplo, o fornecimento de 26% da eletricidade da maior economia europeia, a alemã, depende das usinas nucleares. Numa mostra de que discurso político e realidade muitas vezes são desconexos, a chanceler Angela Merkel decretou moratória de três meses no plano de desenvolvimento do setor. Segundo especialistas ouvidos pela Der Spiegel, os efeitos desta medida popularesca podem provocar o aumento de mais de 10% dos preços cobrados ao consumidor por eletricidade.

 
E não apenas isso. Um ótimo artigo de Bradfor Plumer, editor da The New Republic, mostra como é complicado levar a cabo a ideia de substituir todas as matrizes “sujas” por limpas. Simplesmente, o conceito de vida que temos hoje teria de mudar completamente. O mundo sem a mesma quantidade de energia se transformaria num outro mundo – um mundo onde publicitários, consumidores e empresários não estão dispostos a viver. Plumer cita pesquisa dos professores Mark Jacobson e Mark Delucchi. O resultado é realista. A pesquisa se trata, na verdade, de um exercício em que a humanidade precisaria, até 2050, extrair 100% da eletricidade consumida de fontes limpas existentes hoje.

 
“Precisaríamos de aproximadamente quatro milhões de turbinas de vento de cinco megawatts (a China acabou de construir a primeira delas no ano passado). Também seriam necessárias 90 mil fazendas solares de larga-escala – hoje, só existem cerca de três dezenas delas. Mais 1,7 bilhão de sistemas solares de teto de três kilowatts – o que representa um para cada quatro pessoas no planeta. Para os autores, o desafio principal seria encontrar metais raros – como o neodimium – para todos esses motores elétricos”, escreve.

terça-feira, 15 de março de 2011

Catástrofe no Japão: culpar o uso de energia nuclear somente agora é saída fácil

A tragédia no Japão acabou por atingir também a indústria energética. E, em especial, a nuclear. Diante da gravidade dos acontecimentos, começam a surgir algumas “verdades”. A que tem conseguido conquistar muitos comentaristas é definitiva: a energia nuclear deve deixar de ser usada. Mais ainda, a construção de usinas precisa ser interrompida o quanto antes.

 
Calma. Ontem escrevi sobre a opção japonesa pela geração nuclear. A raiz desta escolha não pode ser simplesmente esquecida, por mais que o ocorrido seja realmente comovente. Alguém é ingênuo o bastante para crer que os governantes japoneses não sabiam dos riscos envolvidos na construção de usinas? É preciso lembrar sempre que o país possui características muito particulares. Uma das mais importantes é a escassez de recursos naturais. É muito possível que o Japão recorresse à construção de hidrelétricas ou à aplicação de matrizes energéticas mais tradicionais, se pudesse. Mas a realidade não é essa.

 

Não se trata de nenhuma maneira de proteger a indústria nuclear, até porque não haveria qualquer razão para isso. Mas é espantoso notar como a tragédia japonesa detonou um processo de condenação generalizada que denuncia certo esquecimento do histórico destrutivo das usinas e reatores nucleares. E não me refiro somente a Chernobil (1986) ou Three Mile Island (1979), catástrofes presentes em 100% das recordações jornalísticas desses dias.

 

Como lembra Lloyd J. Dumas, especialista em desastres tecnológicos, entre 1976 e 2000, houve mais de 1,8 mil incidentes nucleares somente nos EUA. Conforme previu muitas vezes o visionário Matt Groening, há registros frequentes de operadores nas usinas que dormem durante o expediente ou trabalham sob efeito de álcool e drogas (sério). Talvez por isso a alemã Der Spiegel tenha sido a mais radical das publicações ao determinar que “a energia nuclear não pode ser controlada por humanos” (!) – seja lá o que isso signifique em relação às alternativas para os futuros funcionários da área.

Cravar o fim da energia nuclear agora é estranho, na medida em que, de certa forma, ignora todos os muitos desastres ocorridos anteriormente. É como se nenhum deles fosse importante o bastante para se chegar a tal conclusão. E, mais ainda, carrega em si uma dose de crítica ao colocar as autoridades japonesas no lado errado da balança – afinal, se os reatores são os culpados pelos eventos desses dias, os responsáveis por eles estão nesta mesma onda (com o perdão do trocadilho). Este tipo de maniqueísmo é típico e ignora as muitas variáveis em torno das escolhas nacionais.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Tsunami, terremoto e crise política no Japão

Se é minimamente possível dizer tal absurdo, arrisco-me na tarefa de afirmar que o maior beneficiário do terremoto no Japão é Muamar Khadafi. Tal conclusão é um tanto óbvia, devo admitir. Por outro lado, em meio aos milhares de infográficos, entrevistas com geólogos, dados de engenharia e explicações quanto aos movimentos das placas tectônicas que geram tremores e tsnunamis, ainda há algo a ser dito sobre o cenário político japonês.

 
A verdade é que sempre após catástrofes desta magnitude, a imprensa se dedica ao escrutínio que lhe cabe. É correto fazer isso, mas a onda de informações e números é tão intelectualmente arrasadora quanto as ondas que de fato geraram as imagens impressionantes que vemos e revemos incessantemente. Por conta desta comoção – que, vale dizer, é humanamente justificada – o cenário político imediatamente anterior à tragédia foi devidamente esquecido.

 
Muita gente deve ter visto uma imagem do parlamento japonês no momento em que os lustres começaram a vibrar. Naquele instante, a oposição do país pedia a renúncia do primeiro-ministro Naoto Kan – o quinto a ocupar o cargo nos últimos quatro anos. Há denúncias de corrupção, incluindo o recebimento de doação ilegal durante a campanha. Além disso, o país se encontra na porta de entrada de uma violenta crise econômica.

 
“Se não fosse pelo crescimento do mercado chinês, o poder de recuperação de sua indústria e a propensão de seus cidadãos à poupança, o Japão estaria na lista das próximas crises dos mercados financeiros”, escreve Adrian Hamilton no britânico Independent.

 
A situação é ainda pior, vale dizer. Os fazendeiros do país – grupo politicamente importante – respondem por apenas 1% da economia, mas usufruem de taxas de proteção significativas. Como já se sabe que muitas das plantações foram completamente devastadas, o governo está diante de escolhas que podem mesmo mudar comportamentos sociais tradicionais – numa sociedade que mescla modernidade e tradição, lugar-comum que define bem o país.

 
Se por um lado as autoridades poderão interpretar a catástrofe como oportunidade para realizar mudanças – muitas delas exigidas pela oposição e por setores da população insatisfeitos –, será preciso realizar enormes gastos nos esforços de reconstrução. Já se fala, inclusive, num “New Deal” japonês – o Banco Central emitiu comunicado afirmando estar pronto para despejar 183 bilhões de dólares no sistema bancário de forma a manter o funcionamento dos mercados.

 
Mas dinheiro está longe de ser a solução dos problemas. Numa sociedade altamente inserida no universo tecnológico (aliás, o país existe em simbiose com a tecnologia de ponta), a energia é combustível intelectual, industrial e econômico. Desde os terremotos, 11 dos 55 reatores nucleares (responsáveis por mais de 15% da energia consumida) deixaram de funcionar. E se a opção nuclear tem sido criticada por conta de seus riscos, sempre é preciso lembrar que, pelo menos no caso japonês, a alternativa nasceu justamente da ausência de recursos.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Oriente Médio sem maniqueísmos

De volta ao Oriente Médio. A tão sonhada onda de democracia regional estacionou e parece restrita até agora somente à Tunísia e Egito. E, aliás, não está nem um pouco evidente que os novos governos se transformarão em exemplos de secularismo ocidental. Há um grande mal-entendido na classificação dos países da região. O engano principal deriva do fato de a interpretação ser sempre um tanto etnocêntrica. O Ocidente possui suas próprias expectativas para o Oriente. Por si só, este é o primeiro sintoma a provocar fracasso e frustração.

É preciso ter claro que, aconteça o que acontecer, é muito pouco provável que Tunísia, Egito, Líbia, Bahrein e demais se transformem em EUA, Alemanha, Grã-Bretanha ou qualquer outra democracia ocidental. E é natural que Estados até então autocráticos demorem a encontrar seu próprio rumo. Afirmar que democracia é o ponto-alto da evolução é um tanto perigoso. Principalmente porque denota uma visão onde o Ocidente é o símbolo mais bem-sucedido da experiência humana.

Se por esses lados nós encontramos na democracia um sistema que nos atende, as populações dos países do Oriente Médio têm uma visão distinta. E não porque elas também não esperam com ansiedade liberdade de imprensa, eleições justas, ocupantes de cargos executivos com mandatos temporários, mas porque o termo democracia é, até agora, uma simples ideia sem aplicação prática, um conceito meramente.

“Em muitos casos, sociedades árabes modernas associam secularismo a regimes pós-coloniais autoritários que reprimiram suas populações em nome do nacionalismo árabe secular”, escreve Nader Hashemi, professor de Estudos Internacionais da Universidade de Denver, nos EUA.

E como ensina Charlie Sheen, maniqueísmo é para os que não têm a capacidade de entender qualquer nível de subjetividade. Num cenário de atração e repulsa, mesmo rebeldes e ditadores do Oriente Médio procuram ajuda internacional. Todos os parágrafos anteriores poderiam levar a crer que os países da região pretendem pôr em prática independência total em relação a europeus e americanos. Isso não é verdade. Tanto que, no caso específico da Líbia, autoridades pró-Khadafi e líderes rebeldes procuram alianças internacionais.

O mundo conectado exige uma alta dose de pragmatismo. E ao buscar alianças com europeus – no caso dos rebeldes, principalmente de França e Grã-Bretanha –, os líbios detonam qualquer visão linear e uniforme sobre a posição dos árabes. Se os grupos anti-Khadafi têm implorado a franceses e britânicos que coloquem em prática planos militares para depor o ditador do país, a posição da Liga Árabe, de Irã e Turquia é completamente oposta.

Mesmo assim, todos os atores envolvidos encontram uma maneira de diálogo com o exterior. Mesmo que isso signifique oposição, enviar mensagens aos ocidentais é, por si só, uma forma de legitimar o cenário complexo atual onde nenhum homem é uma ilha.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Jogadores de futebol brasileiros participam de festa equivocada na Chechênia

O programa de carnaval de ex-jogadores de futebol brasileiros de sucesso foi bastante curioso. Romário, Bebeto, Dunga, Denílson, Djalminha, Júnior Baiano e outros fizeram uma viagem extravagante. Abriram mão de blocos carnavalescos, camarotes vip, desfiles de escolas de samba em nome do altruísmo humanitário. Para ajudar as vítimas das enchentes no Rio, toparam jogar um amistoso na gelada Chechênia. Olha que bacana! Alguém acredita nisso?

Foto: Dunga disputa a bola com o presidente/craque Kadyrov

Agora basta de mundo imaginário. Ninguém confirma, mas o deputado Romário confidenciou a amigos ter recebido cachê de 500 mil reais para participar da partida. Os demais jogadores não revelaram as quantias. O que cada um faz durante o carnaval é um problema particular, certo? Certo, evidente. O problema é que os ídolos brasileiros (e uso o termo por ter noção do país onde vivo, não porque admire os jogadores de futebol) participaram da festa futebolística particular do presidente checheno Ramzan Kadyrov.

No cargo desde abril de 2007, Kadyrov tem uma história de vida no mínimo suspeita. Nomeado pelo então presidente russo Vladimir Putin, Kadyrov defendeu a independência chechena, mas depois mudou de lado. Até aí nada de errado, afinal mudar de opinião pode ser considerado até uma sofisticação intelectual. A questão é que seus métodos de exercício de poder são suspeitos. Há 3 mil desaparecidos, e o presidente é acusado de ordenar sequestros, torturas e execuções sumárias de opositores e ativistas de direitos humanos.

Essas não são informações confidenciais. Estão publicadas em todo o tipo de veículo, basta apenas fazer uma pesquisa rápida na internet. Mesmo assim, nossos craques parecem não ter pensado duas vezes antes de compactuar com a festa particular de Kadyrov. E vestindo o uniforme da seleção brasileira. Aliás, este é um aspecto interessante porque num primeiro momento, quando questionada sobre o jogo, a CBF disse ter dado autorização para que os jogadores usassem o traje oficial da entidade. Depois, num pronunciamento que beira o ridículo, autoridades da confederação disseram que a partida era informal, e que camisas, calções e meiões da seleção estão disponíveis nas lojas a qualquer um que queira comprá-las. Ou seja, a CBF tirou o seu da reta.

Obviamente, a entidade é uma empresa privada (sempre é importante ressaltar isso, diga-se de passagem). Mas o futebol brasileiro é um patrimônio nacional, uma das expressões mais significativas do povo brasileiro – e longe de mim adornos e patriotadas em torno do assunto. Na medida em que cuida de um dos aspectos mais relevantes do país, a CBF deveria, em tese, ter algum cuidado nas associações que faz. Em pior situação estão os jogadores que participaram da “festa”. Seria irresponsabilidade dizer que todos receberam dinheiro para jogar, mas parece que sim. Se não estão dispostos a qualquer pensamento crítico quanto a suas fontes de renda, que ao menos tivessem cuidado com suas próprias carreiras. Definitivamente, entrar em campo e bater palmas a um sujeito acusado de tantos crimes não conta pontos a ninguém.

Não é a primeira vez que futebol e política estão aliados – e do lado errado. Foi assim na Copa de 1978, na Argentina; ou durante a Copa de 1970, quando o governo militar abusou da patriotada. Mas vivemos tempos distintos, onde não há ameaças à vida dos que não se dobram às vontades políticas. Muito menos do presidente da Chechênia. Aliás, para piorar o quadro, Kadyrov jogou e fez dois gols. Numa cena patética, driblou o goleiro Zetti – um drible infantil em que Zetti claramente permite a passagem do presidente.

Os “ídolos” brasileiros que participaram do circo de mídia na Chechênia não estão arrependidos. Mas deveriam. Como deveriam também ser menos admirados, criticados com menos polidez, menos vergonha. Quando entram em campo, levam todo o Brasil com eles. E, dessa vez, entraram do lado errado da história.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Carnaval e o recuo estratégico americano

O carnaval das relações internacionais será bastante interessante. Se possivelmente neste ano a popularidade da máscara de Obama deve perder para a de Ronaldinho Gaúcho, são grandes as chances de os blocos de rua líbios animarem ainda mais os eventos no Oriente Médio. Como estarei voluntariamente isolado num lugar onde internet e celular são artigos sem qualquer função – porque o sinal é inexistente –, meus dias de folia serão embalados pela trilha sonora do Clube da Esquina e por grupos indie de jovens deprimidos. Volto a escrever na próxima quinta-feira.

foto: refugiados líbios aguardam autorização para cruzar a fronteira com a Tunísia

Enquanto isso, a atuação internacional segue pelo caminho da discrição. É claro que tudo pode mudar no intervalo de uma semana, mas com tantos entraves a uma intervenção clássica na Líbia, mesmo os EUA parecem dispostos a exercer o que se chama de diplomacia leve. Como ficar de braços cruzados não é uma opção, Washington decidiu atuar quase como uma ONG de grande orçamento, digamos assim: disponibilizou aviões militares para transportar egípcios de volta para casa – um contingente populacional que se refugiou na fronteira da Líbia com a Tunísia.

E mais: os EUA têm contribuído com o envio de equipes de ajuda humanitária para cooperar com funcionários das Nações Unidas que trabalham na região. Este pacote de medidas é uma forma inteligente de agir diante das incertezas. Afinal, como ninguém sabe qual o resultado prático das revoltas – para ser mais claro, qual o olhar dos novos governos que vão emergir após tantas mudanças –, Obama pôs em prática um modelo de atuação internacional que talvez reflita parte das expectativas criadas por sua eleição, em 2009.


Se há críticas históricas às intervenções militares, Washington aproveitou a oportunidade criada pela indefinição do momento para aliar duas estratégias interessantes: recuar e ao mesmo tempo estar presente no cenário dos acontecimentos de maneira discreta. Transportar egípcios de volta para casa é uma maneira de reconhecer os cidadãos comuns como os legítimos representantes do país. É também uma forma de estender a mão ao novo governo, buscando um estreitamento de laços com o regime. E, para completar, os EUA deixam claro que não estão dispostos a lutar contra a posição da comunidade internacional. Pelo menos não neste momento.

quinta-feira, 3 de março de 2011

A nova ordem mundial se manifesta a partir da crise líbia

O concerto internacional mudou. Não está claro se está mudança é duradoura, mas os eventos na Líbia mostram que a relação de poder entre países está alterada. A indecisão sobre o que fazer para frear o ímpeto de poder de Khadafi é sintomática. Como não acredito na “Era de Aquárius”, não creio que a relutância das potências em colocarem em prática a capacidade militar de que dispõem seja fruto de algum tipo de “evolução do pensamento humano”. Deixemos o musical Hair de lado por ora.

A nova ordem tem mais a ver com realismo econômico e político. Com Europa e EUA em crise, não é de se espantar que ambos já não sejam mais porta-vozes e atores únicos das decisões. Enquanto nos últimos anos assistimos à retração de ambos, testemunhamos também o crescimento de grandes países emergentes: Brasil, Turquia, África do Sul, Índia – sem falar na China, potência que muitas vezes não compartilha das decisões internacionais americanas e já reconhecida com assento no Conselho de Segurança da ONU.

O impasse líbio diz respeito a este momento singular. Por mais que Washington e europeus ainda representem uma considerável fatia do poder internacional, simplesmente já não é mais possível ignorar a existência dos outros atores. O problema é que por ora não estão definidos que papéis serão exercidos por esses países. Por isso é importante reformar a ONU. Por isso é importante repensar o próprio Conselho de Segurança. Se ele já contasse com a participação efetiva dos emergentes, possivelmente um plano conjunto seria elaborado.

A crise humanitária na Líbia pode ser considerada a primeira expressão deste novo mundo. Como há grande ansiedade por parte dos países – que querem e precisam se afirmar –, ninguém parece disposto a concordar – o que poderia ser interpretado como sinal de fraqueza diante da pressão das potências.

É neste cenário também que está o Brasil. Não porque esta é uma posição da atual presidente Rousseff, mas porque seu governo colhe os frutos de oito anos de alinhamento do país com os Estados emergentes – o que o próprio Itamaraty costumava chamar de política “Sul-Sul”. Por conta dela, por conta das inúmeras viagens e conferências realizadas por Lula na África e do reconhecimento do Brasil como espécie de porta-voz dos interesses dos países não-vinculados, Khadafi cogitou a possibilidade de receber uma missão de observadores internacionais – e Brasília enviaria integrantes para compor esta missão.

Como fica claro que o ditador Líbio não está disposto a se render às demandas do status quo de poder internacional representado principalmente por EUA e União Europeia, há um incentivo para que os emergentes atuem com ainda mais protagonismo na resolução deste problema. E crise é sempre uma tremenda oportunidade. Assim, o presidente venezuelano, Hugo Chávez, aproveitou para surfar nesta onda e sugeriu a Khadafi que receba uma comissão internacional para ouvir governistas e opositores.

Tudo isso mostra um mundo em transformação, um mundo que já não aceita mais as mesmas soluções apresentadas há bem pouco tempo. E é claro que americanos e europeus têm feito uma leitura desses eventos, o que talvez explique a demora em por em prática planos de controle aéreo sobre o território e, menos ainda, intervenção militar. A crise líbia pode passar à história como o evento internacional que modificou de vez a forma como conflitos são resolvidos. Se isso será positivo, só o tempo dirá.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Atoleiro líbio

Ontem comentei sobre a possibilidade de intervenção estrangeira na Líbia. O caso envolve tantas articulações e oposições políticas que fica difícil imaginar quem seria capaz de equalizar todas as posições distintas. Com EUA e Grã-Bretanha à frente da pressão pelo uso militar – são os únicos que até o momento cogitaram publicamente esta possibilidade –, não era difícil prever a polarização do assunto.

Acho importante reafirmar que todo mundo está com medo de bancar a decisão de derrubar Khadafi à força. Se as autoridades americanas foram as que mais diretamente deram entender que esta opção não está descartada, o primeiro-ministro britânico, David Cameron, não quis ficar para trás. O problema é que há poucos meses ele foi o responsável por introduzir um doloroso plano de cortes de gastos interno. Diante disso, é bastante natural que a imprensa do Reino Unido tenha caído de pau sobre sua “bravura” militar:

“O espetáculo do primeiro-ministro de se colocar ao lado de nossos aliados-líderes (EUA) para fazer ameaças públicas contra Khadafi no momento em que nossas forças armadas enfrentam sua maior redução (de verbas) em décadas é simplesmente indefensável”, afirma editorial do Telegraph.

De fato, a conta desta aventura militar contra o líder líbio certamente será alta. Mas o problema não se restringe a isso. Enfrentar as tropas que ainda lutam por Khadafi ressuscita alguns dos piores fantasmas de Londres e Washington. Aliás, nem se pode chamar de fantasmas, até porque permanecem vivos na memória recente de cidadãos e da imprensa: o imbróglio em Iraque e Afeganistão. Se a guerra nos dois países acabou por se transformar numa luta sem fim entre tropas ocidentais e uma enorme variedade de franquias terroristas, a eventual intervenção na Líbia pode acabar por seguir o mesmo caminho.

Já se sabe que a al-Qaeda tem enviado para o país norte-africano fileiras de seus combatentes vinculados à filial magrebina. Se tropas ocidentais de fato invadirem a Líbia, o território não apenas pode se transformar num novo Afeganistão – a situação no Iraque é um pouco melhor –, mas numa análise combinatória de militância e enfrentamento ideológico.

Explico: a al-Qaeda certamente não se alinharia a americanos e britânicos. Por outro lado, no entanto, lutaria contra os exércitos estrangeiros e também contra as forças leais a Khadafi (se elas ainda existirem, claro) e seus mercenários; americanos e britânicos (ou até a Otan, muito embora esta possibilidade seja aparentemente remota neste momento) se preocupariam em derrubar as forças de Khadafi o quanto antes e, posteriormente, seriam obrigadas a algum enfrentamento com a al-Qaeda. Já as forças leais a Khadafi, bom, essas têm diante de si o pior dos cenários: lutam contra todos porque são os alvos prioritários de todo mundo.

terça-feira, 1 de março de 2011

O medo de se posicionar sobre a invasão à Líbia

Há neste momento o início de um debate que aterroriza políticos, jornalistas e líderes ocidentais: a legitimidade ou não de uma intervenção militar na Líbia. O assunto é polêmico por natureza, mas a discussão se torna ainda mais apimentada pela memória recente da invasão americana ao Iraque. Se Saddam Hussein foi deposto, capturado e morto, o destino político daqueles que justificaram a empreitada militar pode não ter sido a forca – como no caso do ditador iraquiano –, mas uma mancha no currículo que pode atrapalhar gravemente pretensões políticas futuras.

foto: ajuda humanitária chega a Benghazi

A decisão de apoiar a intervenção na Líbia é um pouco diferente da grande epopeia de retórica e paixão que precedeu a invasão ao Iraque. Primeiro porque no centro disso tudo estava o internacionalmente detestado ex-presidente dos EUA. Segundo, porque havia a certeza de que o objetivo era a tomada do patrimônio petrolífero do pais. E terceiro, porque o momento político era completamente distinto: hoje, a população líbia quer a derrubada de Khadafi. Em 2003, havia oposição a Saddam, mas nem de longe multidões saíam às ruas de Bagdá exigindo sua renúncia – aliás, quem ousasse fazer este tipo de manifestação certamente pagaria com a própria vida.

No entanto, há uma semelhança perversa que pode ser o fiel da balança: a escalada da morte de civis. Como agora na Líbia, o Ocidente nada fez quando Saddam Hussein ordenou o ataque com gás sarin que matou cinco mil curdos, em 1988. Tal inaptidão de lidar com esta memória pode ser decisiva no momento atual. Além disso, outro aspecto importante gira em torno da indefinição quanto à receptividade dos manifestantes líbios à intervenção estrangeira. Este assunto é um grande enigma para todo mundo. Por mais que haja sinais contraditórios, a verdade é uma só: é impossível saber o que a população do país pensa sobre isso. Com a situação de violência cada vez mais generalizada, é impensável fazer qualquer levantamento sobre o assunto.

E aí voltamos ao primeiro parágrafo. Todos os que precisam ou querem opinar sobre o assunto estão com medo de se expor. Como ninguém sabe qual o pensamento vai prevalecer, há consenso quanto ao profundo temor de estar do lado errado da história. Ninguém quer arriscar biografias porque todo mundo já sabe o destino dos que ficaram marcados por apoiar a guerra no Iraque.

Vale citar que há argumentos dos mais perversos para justificar a passividade atual. Por exemplo, um colunista do Financial Times diz que o nível de violência ainda não é comparável ao de Ruanda, por isso forças internacionais não agiram. Ora, qual a diferença entre as mortes de mil e de 800 mil pessoas? Quer dizer, quem controla esta balança que determina o limite “tolerável” de assassinatos deliberados de civis? Isso me parece um tanto arrogante. É muito fácil dizer que mil mortes são toleráveis quando “mil” não passa de um número frio, sem rostos e identidades. Khadafi está disposto a usar todo seu arsenal em nome da permanência no cargo. Já era para isso estar claro.

Impedir que isto aconteça é um dever da comunidade internacional. Enquanto as potências ocidentais se afogam em dilemas, manifestantes continuam a ser mortos. Isso não quer dizer, no entanto, que considere inválido discutir as muitas possibilidades político-estratégicas que cercam a decisão de invadir a Líbia. Este é assunto para outro texto.