terça-feira, 29 de março de 2011

As entrelinhas da justificativa americana para atacar a Líbia

O presidente Obama tornou pública a argumentação da Casa Branca para justificar a ação na Líbia. Por mais que todo mundo já conheça as razões dos EUA, era mesmo necessário algum tipo de escopo teórico que deixasse mais ou menos claro como Washington percebe seu posicionamento neste novo Oriente Médio. Em meio à confusão generalizada – e não me refiro somente aos distúrbios regionais, mas também ao clima de incerteza que paira nas cabeças dos governantes das potências ocidentais –, os americanos não se fizeram de rogados: Obama acrescentou ainda mais elementos a este cenário de insegurança política.

 

Há uma enorme contradição prática envolvendo as palavras do presidente americano. Enquanto mais uma vez repetia o mantra de que os EUA exercem papel coadjuvante na ofensiva, dados revelados pelo New York Times mostram o oposto: dos 200 mísseis Tomahawk disparados contra as forças de Khadafi desde o início dos ataques, em 19 de março, 193 foram lançados por forças americanas; entre as munições de precisão, de 592 disparos, 455 couberam aos EUA. Esses números evidenciam a liderança militar americana, não simplesmente a participação das forças do país.

Mas é claro que a posição de Obama não poderia ser diferente. Há alguns pontos importantes que levaram Washington a insistir neste processo, digamos, de automarginalização: a um ano do ciclo eleitoral – onde o atual presidente deve lutar pela reeleição –, Obama precisa reafirmar-se como o líder da mudança. E, em meio à crise econômica americana, distanciar-se da imagem de guerreiro do Oriente Médio não apenas dissocia o atual ocupante da Casa Branca do anterior (até porque política internacional é somente uma questão dentre tantas outras que serão colocadas em debate): passar o cetro aos outros membros da coalizão pode também reduzir custos financeiros. E certamente os 500 milhões de dólares gastos na Líbia até agora serão usados pelo partido Republicano durante a campanha.

É claro que há também uma tentativa de buscar legitimidade internacional. Por isso o encontro desta terça-feira entre altas autoridades de 40 países que se reuniram para discutir a crise Líbia acontece em Londres, não em Washington. Obama deixou claro em seu discurso a necessidade de estudar caso a caso eventuais intervenções. Ele não creditou apenas a questões morais esta nova ofensiva, mas também “aos nossos interesses” (interesses americanos, que fique claro).

De fato, os EUA têm procurado usar a Líbia como espécie de exemplo dos muitos fatores que cercam as diretrizes militares americanas sob o comando de Obama. O país só é alvo das ações porque Khadafi estava pronto a sacrificar seus próprios cidadãos em nome da permanência no cargo; havia risco aos países vizinhos recém-libertados dos próprios ditadores (Tunísia e Egito – cujos líderes autoritários contavam com a complacência de Washington, diga-se de passagem); o ditador líbio é um histórico inimigo dos EUA, inclusive tendo patrocinado atentados terroristas a cidadãos do país; e os opositores líbios demonstram compartilhar “valores” americanos.

No fundo, os EUA querem deixar o mais evidente possível que a ofensiva na Líbia não é um padrão, mas que os acontecimentos no país se encaixaram ao pensamento internacional de Obama – e não o contrário. Esta é uma forma também de mandar um recado interno e externo. Do ponto de vista da política doméstica, a mensagem aos contribuintes é de que o governo tem pleno respeito aos problemas enfrentados pelos cidadãos comuns e que seus impostos não serão “queimados” em aventuras internacionais que não sejam fundamentais aos interesses do país. Esta linha de raciocínio busca também cortar pela raiz eventuais exercícios de argumentação dos republicanos.

O discurso de Obama mira também os acontecimentos na Síria. Está claro que não é interesse americano se intrometer nos assuntos de um Estado vinculado a um enorme problema no Oriente Médio (leia o texto publicado ontem). Ao “customizar” o caso Líbio, os EUA tentam fortalecer suas próprias posições. Se é tarefa árdua encontrar alguma coerência no jogo político, a Casa Branca optou por “inventar” a sua própria.

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